Palácio da Justiça - Brasília |
Por Víctor Gabriel Rodríguez
Seria
infantil deixar de reconhecer que nós, todos nós, somos ao mesmo tempo agentes
e alvo de uma disputa por atenção a palcos diversos, com naturais reflexos
políticos. A condenação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de um atual
candidato a prefeito de uma importante cidade decerto abala algumas estruturas,
enquanto, no prédio em frente, a CPI do Cachoeira remexe com outras forças que
adorariam que o mensalão não lhes cortasse grande parte do espaço nos jornais.
São temas políticos em que, em tese, eu não deveria me meter, mas essa
bipolaridade é pano de fundo para a questão jurídica que, já se nota, pode dar
as cartas no julgamento atual no Supremo: quanto vale uma prova produzida em
CPI?
Era
já anunciado que a pergunta teria que ser respondida no transcorrer do processo
do mensalão, até porque, tecnicamente, trata-se de uma questão legal a ser
interpretada: o artigo 58 da Constituição Federal atribui textualmente às CPIs
"poderes de investigação próprios de autoridades judiciais", e daí é
fácil inferir que, no atrito elementar da tripartição republicana, os
parlamentares avoquem para si o poder constitucional de agir como juízes.
Depois, ficariam insatisfeitos se vissem o resultado das investigações da
comissão parlamentar desconsiderado pelas autoridades judiciárias permanentes.
De outro lado, como dito, agora do valor da CPI depende, sim, o futuro de
alguns réus da Ação Penal nº 470, e de tudo isso vem um embate que invoca da
alta Corte uma resposta final.
Mas
se podem identificar dois elementos que não autorizam, de imediato, que se
considere o produzido em CPIs como prova vinculante, obrigatória ao
convencimento do Judiciário. Primeiro que, quando se concedem aos parlamentares
transitoriamente "poderes de juiz", estes são algo pouco mais amplo
que os meramente inquisitoriais. Ou seja, poderes de levantar dados em
preliminar, para que, depois, sejam refeitos na medida do possível, diante de
advogado, promotor e juiz. É o trabalho do chamado "inquérito", que
no caso é transferido da polícia, subordinada ao Executivo, para a
"comissão parlamentar", do Legislativo. E o segundo elemento é de
lamentável natureza fática: realizar interrogatórios enquanto os inquisidores
assistem no laptop a vídeos pornográficos das futuras musas da Playboy não é
exatamente uma atitude que desperte no Judiciário e na população a
credibilidade suficiente sobre a seriedade dos seus atos; menos ainda, das
provas que dali nasçam. Daí um juiz experiente, em especial se já frequentara
os bancos da advocacia, observa o quanto produzido exclusivamente em delegacia
de polícia, ou mais raramente nas CPIs, com cuidado. Ou com desconfiança.
Em
minha opinião, o texto da Constituição insinua o que os deputados intuem: que o
grande poder da CPI se concentra no momento político de sua instauração e de
seu desenrolar. Para isso se a consagra ao Congresso, não mais. No caso do
mensalão, seu auge do poder estava no interregno em que - como diziam quase
todos os prognósticos da época - o governo Lula sangraria até a morte, diante
das estocadas que lhe representavam cada depoimento nas sessões do inquérito
parlamentar de então. Pretender mais que isso é, agora sim, usurpar o poder do
próprio Judiciário, a quem cabem os interrogatórios serenos, sem pressão, nos
quais, ao contrário de o que pensam inquisidores inexperientes, em regra o
interrogado deixa escapar as fissuras que no futuro lhe condenarão. Se me é
permitida a comparação, o bom entrevistador sabe que, se enfrenta o
entrevistado, ou retruca, ou puxa para si o protagonismo do ato, deixa de
colher as melhores falas, porque o entrevistado, constrangido, cala-se. Ou
mente. Os grandes furos de reportagem brotam do ambiente sereno criado pelo
entrevistador, e no interrogatório não tem porque ser diverso. O bom juiz
conhece isso, mas o parlamentar - como agora se pode revivenciar na CPI do
Cachoeira - custa a aprendê-lo.
Por
tal técnica e especialização, na queda de braço do valor probatório da CPI leva
vantagem ampla o Poder Judiciário, e é bom que seja assim. Não que eu creia em
um Judiciário tecnicamente perfeito ou, menos ainda, incorruptível, mas é sinal
de evolução social que as forças da República delimitem seus papéis de acordo
com a previsão constitucional. O ideal, daí, seria que o Supremo, neste caso,
se expusesse menos, apenas porque quem tem mesmo poder deve falar pouco, e
firme. Mas não sobrevaloro: as câmeras e as vaidades são, nesse horizonte que
vai da corrupção extrema à efetivação da democracia, o menor dos entraves.
Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de
direito penal da Universidade de São Paulo (USP/FDRP) e membro da União
Brasileira de Escritores
E-mail: victorgabrielr@hotmail.com
Fonte: http://www.valor.com.br/mensalao/2811924/o-poder-judiciario-e-o-valor-das-provas-das-cpis