Teatro José de Alencar. Fortaleza, Ceará, Brasil |
Por Romeu Duarte
Semana passada,
ao final de uma entrevista concedida a um canal de televisão local sobre a degradação
do nosso patrimônio, tive, como dizem os psicólogos, um insight, a compreensão repentina de uma determinada situação: como
é difícil para o cearense conviver com seu passado e/ou com o profundo de sua
cultura. Não, não me perguntem por qual razão isso acontece. Fui adotado por
esta terra, moro aqui há quase cinqüenta anos, vou inteirar outros trinta nesta
lida de arquiteto e ainda não descobri o porquê dessa relação ser tão penosa ou
inexistente. Há mistérios em que uma vida toda é pouco tempo para desvendá-los.
Melhor fazer perguntas mais fáceis: Por que a má fama do Conjunto Zé Walter? A
Gentilândia existe mesmo ou é só papo? Por aí, por aí...
O bom é que essa
confusão toda em torno do belo sobrado de porão alto de Maranguape, quase levado
ao barro pela ignorância, me fez lembrar de quando entrei para as fileiras
patrimoniais, já lá se vai janeiro à beça. Mal entrado no Curso de Arquitetura
da UFC, precisando trabalhar para ganhar experiência profissional e uns
trocadinhos para a birita nossa de cada dia, fui convidado por nada mais nada
menos que o Liberal de Castro para fazer um levantamento de umas casas antigas
na Parangaba. Foi aí que me dei conta da droga pesada que é o patrimônio: o
cabra padece, apanha que nem presta, sofre que só sovaco de aleijado e, mesmo
assim, continua lá, sem largar o osso, a venta no rumo da esperança,
viciadinho. Igual, nem heroína. Masoquismo ou teimosia?
A apreensão
tátil da arquitetura. O desenho como meio de conhecimento dos artefatos
arquitetônicos. A fala não verbal dos edifícios e sítios históricos. O
encantamento proporcionado pela ancianidade de uma pedra, um tijolo, uma telha.
A pátina dos séculos impressa nas paredes. Os segredos guardados num afresco,
num coruchéu, num frechal. Erudito e popular, Theatro José de Alencar e Mercado
da Carne de Aquiraz. Talvez seja a insuperável beleza dessas coisas tão simples
que, para serem enxergadas, impõem o refinamento da vista de quem apenas lhes olha,
o que nos impele sempre à frente, apesar de todas as agruras do cotidiano.
Salvar um prédio da destruição é, como dizia Pound da boa poesia, achar um
cacho de uvas em meio à serragem. Epifania.
Entender que as
cidades têm um corpo, suas construções, praças e ruas, e uma alma, suas
celebrações, formas de expressão, saberes e ofícios, lugares. Compreender que a
experiência de uma urbe estende-se para além do construído, atingindo o intangível
de sua cultura e a candura de sua natureza. Minha formação deu-se por essa via,
exigente e complexa, em que os objetos são tão importantes quanto seu entorno.
O patrimônio nos ensina uma disciplina que as escolas de arquitetura raramente
ministram: humildade. O respeito devido
à obra de alguém que nem conhecemos, mas a quem admiramos pela qualidade do seu
trabalho. Lutar para recuperar e manter íntegro um acervo que recebemos e
legá-lo aos pósteros, eis o grande desafio.
E a jornalista simpática, com seu microfone em
riste, insiste: Este nosso descaso para com o patrimônio, será por causa da
veia mercantil do povo, que a tudo transforma em mercadoria posta à venda? Teríamos
algo não resolvido com o nosso passado, do qual queremos fugir a todo custo? Respondo-lhe
novamente: não sei, nem imagino. Tarefa boa para o Abelardo Montenegro,
perscrutador da psique alencarina com escritório montado na Praça do Ferreira,
infelizmente já ido. Com a boa nova da redenção e do futuro uso do velho
casarão maranguapense, a gravação se encerra. No pátio do antigo teatro,
cenário do evento, uma multidão de visitantes atentos. Súbito, um entreouvido:
“Pense numa ruma de ferro! Respeite! Isso aí vendido no peso...”.
Fonte: jornal O POVO de 24 de fevereiro de 2014