segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ALMA DE PEDRA E CAL

Teatro José de Alencar. Fortaleza, Ceará, Brasil



Por Romeu Duarte


Semana passada, ao final de uma entrevista concedida a um canal de televisão local sobre a degradação do nosso patrimônio, tive, como dizem os psicólogos, um insight, a compreensão repentina de uma determinada situação: como é difícil para o cearense conviver com seu passado e/ou com o profundo de sua cultura. Não, não me perguntem por qual razão isso acontece. Fui adotado por esta terra, moro aqui há quase cinqüenta anos, vou inteirar outros trinta nesta lida de arquiteto e ainda não descobri o porquê dessa relação ser tão penosa ou inexistente. Há mistérios em que uma vida toda é pouco tempo para desvendá-los. Melhor fazer perguntas mais fáceis: Por que a má fama do Conjunto Zé Walter? A Gentilândia existe mesmo ou é só papo? Por aí, por aí...
O bom é que essa confusão toda em torno do belo sobrado de porão alto de Maranguape, quase levado ao barro pela ignorância, me fez lembrar de quando entrei para as fileiras patrimoniais, já lá se vai janeiro à beça. Mal entrado no Curso de Arquitetura da UFC, precisando trabalhar para ganhar experiência profissional e uns trocadinhos para a birita nossa de cada dia, fui convidado por nada mais nada menos que o Liberal de Castro para fazer um levantamento de umas casas antigas na Parangaba. Foi aí que me dei conta da droga pesada que é o patrimônio: o cabra padece, apanha que nem presta, sofre que só sovaco de aleijado e, mesmo assim, continua lá, sem largar o osso, a venta no rumo da esperança, viciadinho. Igual, nem heroína. Masoquismo ou teimosia?
A apreensão tátil da arquitetura. O desenho como meio de conhecimento dos artefatos arquitetônicos. A fala não verbal dos edifícios e sítios históricos. O encantamento proporcionado pela ancianidade de uma pedra, um tijolo, uma telha. A pátina dos séculos impressa nas paredes. Os segredos guardados num afresco, num coruchéu, num frechal. Erudito e popular, Theatro José de Alencar e Mercado da Carne de Aquiraz. Talvez seja a insuperável beleza dessas coisas tão simples que, para serem enxergadas, impõem o refinamento da vista de quem apenas lhes olha, o que nos impele sempre à frente, apesar de todas as agruras do cotidiano. Salvar um prédio da destruição é, como dizia Pound da boa poesia, achar um cacho de uvas em meio à serragem. Epifania.
Entender que as cidades têm um corpo, suas construções, praças e ruas, e uma alma, suas celebrações, formas de expressão, saberes e ofícios, lugares. Compreender que a experiência de uma urbe estende-se para além do construído, atingindo o intangível de sua cultura e a candura de sua natureza. Minha formação deu-se por essa via, exigente e complexa, em que os objetos são tão importantes quanto seu entorno. O patrimônio nos ensina uma disciplina que as escolas de arquitetura raramente ministram: humildade.  O respeito devido à obra de alguém que nem conhecemos, mas a quem admiramos pela qualidade do seu trabalho. Lutar para recuperar e manter íntegro um acervo que recebemos e legá-lo aos pósteros, eis o grande desafio.
 E a jornalista simpática, com seu microfone em riste, insiste: Este nosso descaso para com o patrimônio, será por causa da veia mercantil do povo, que a tudo transforma em mercadoria posta à venda? Teríamos algo não resolvido com o nosso passado, do qual queremos fugir a todo custo? Respondo-lhe novamente: não sei, nem imagino. Tarefa boa para o Abelardo Montenegro, perscrutador da psique alencarina com escritório montado na Praça do Ferreira, infelizmente já ido. Com a boa nova da redenção e do futuro uso do velho casarão maranguapense, a gravação se encerra. No pátio do antigo teatro, cenário do evento, uma multidão de visitantes atentos. Súbito, um entreouvido: “Pense numa ruma de ferro! Respeite! Isso aí vendido no peso...”.

Fonte: jornal O POVO de 24 de fevereiro de 2014

POLO CRIATIVO DO BENFICA

Reisado do Cordão do Caroá  no Benfica


Por Joaquim Cartaxo

Em Fortaleza, a avenida da Universidade reúne a maior quantidade de equipamentos culturais públicos da cidade: reitoria da Universidade Federal do Ceará, Auditório Castelo Branco, Rádio e Imprensa Universitária, Museu de Arte, cursos de Comunicação Social, de Letras, de Biblioteconomia, de Arquitetura e Urbanismo, centros de Língua Inglesa, Francesa e Alemã, Casa Amarela (cinema), Teatro Universitário, Faculdade de Direito.

Além dessa concentração, essa avenida interliga os bairros Benfica e Centro antigo onde se encontra outro conjunto de equipamentos de valor histórico e cultural significativo.

A quantidade de equipamentos e a proximidade com o Centro credenciam o Benfica como polo portador de elevado potencial para o desenvolvimento de um programa de atividades culturais permanentes de natureza acadêmica, popular e portes variados, capaz de gerar oportunidades socioeconômicas e fortalecer atividades privadas que se realizam em bares, restaurantes, cafés, livrarias, lojas e similares do bairro.

Um caminho para organizar essas oportunidades é a economia criativa com seus ativos intangíveis e simbólicos organizados em um núcleo cultural que congrega as denominadas “indústrias criativas de arte e cultura” cuja criatividade fortalece a economia tradicional.

Desenhar e implantar um programa cultural e econômico para um Benfica Criativo requer parceria público-privada com ativa participação da sociedade; integração e articulação dos sujeitos políticos e sociais, garantindo a diversidade; realização de todas conexões possíveis entre local e global, entre passado e futuro; adoção de cultura diferenciadora que interage com os setores econômicos e, ao mesmo tempo, favorece a formação de um ambiente criativo; priorização de educação, capacitação e investimento em tecnologias; estabelecimento de uma gestão criativa com objetivos e metas claros, realizáveis no médio e longo prazos.




Joaquim Cartaxo é arquiteto, urbanista e secretário de formação política do PT/CE

Fonte: jornal O POVO de 24 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

OS POTENCIAIS DOS PROGRAMAS ANTIPOBREZA

Arquivo


Por Ladislau Dowbor

Demos os primeiros passos e já falam em esgotamento do modelo, muitos com a esperança que se esgote, e com as vistas postas nas eleições. A comprovação estaria no “pibinho”. Tirou-se 36 milhões de pessoas da miséria, ampliou-se um pouco a profundidade do mercado consumidor, e agora teríamos de buscar outros caminhos. Na realidade não há esgotamento, e os potenciais do desenvolvimento decente e sustentável continuam centrados na redução da miséria, na inclusão produtiva, na elevação da massa salarial e dos direitos sociais.

Entre 1991 e 2010 o aumento da renda familiar per capita medido pelo IDH nos 5.565 municípios do país, esforço conjunto das Nações Unidas, IPEA, FJP e IBGE, foi de 346 reais. Isto representa muito para os mais pobres, mil reais por mês para uma família de três pessoas, mas é suficiente? O estudo também mostra que neste período tivemos no Brasil um ganho médio de 9 anos de expectativa de vida, passando de 65 para 74 anos, o que representa um resultado espetacular em tão curto período. Mas outros países estão acima de 80 anos.

A educação foi a que mais avançou, com o IDHM (Indicador de Desenvolvimento Humano Municipal) passando do trágico 0,28 em 1991 para 0,64 em 2010. Foi o maior avanço em termos de ritmo, mas ainda é o que é o nosso pior indicador, pelo trágico que era o ponto de partida. Neste indicador de educação, um componente é que a população de 18 a 20 anos com ensino médio completo passou de 13% para 41%, um gigantesco avanço, mas também um imenso atraso a recuperar.

Os dados aí estão, o Brasil acordou mesmo, e está avançando a passos largos, mas ainda está a anos luz das necessidades para um país minimamente equilibrado, para uma vida digna no andar de baixo, e um luxo menos espalhafatoso no andar de cima. Não há dúvida de que a injeção de recursos na base da sociedade foi essencial para este despertar, pois a partir de um certo nível de falta de recursos a pobreza se transforma também em falta de oportunidade, na chamada armadilha da pobreza. Esta armadilha está sendo rompida.

O entusiasmo inicial de quem olha apenas para o PIB, que chegou a dar um salto muito expressivo, é míope, por olhar essencialmente para o consumo imediato e de fortes repercussões no mercado, com a compra, por exemplo, da linha branca e de carros. Uma família ter geladeira significa que a comida que pode ser guardada, que o remédio não estraga. O carro não é o problema que se proclama – parece até divertido os mais aquinhoados acharem um acinte pobre ter carro - pois o problema está na ausência de transporte público para os deslocamentos de milhões se dirigindo para basicamente os mesmos destinos nos mesmos horários em transporte individual. O uso do carro para deslocamentos familiares diversificados não é a questão central, e sim a insuficiente presença do sistema público de transporte de massa.

É este segmento de expansão do acesso ao básico que está diminuindo. Na análise da PNAD de 2012 sobre a posse de bens duráveis, “Em 98,7% dos domicílios particulares permanentes investigados em 2012 havia fogão. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, os percentuais dos que tinham esse bem superou 99%. Nas Regiões Norte e Nordeste essas proporções foram, respectivamente, de 97,3% e 97,5%. A pesquisa confirmou o avanço na posse de alguns bens duráveis de 2011 para 2012, tais como: geladeira (de 95,8% para 96,7%); máquina de lavar roupa (de 51,0% para 55,0%) e televisão (de 96,9% para 97,2%).(...) Em 2012, os percentuais de domicílios em que ao menos um morador possuía carro ou motocicleta para uso pessoal foram de 42,4% (26,7 milhões de unidades) e 20,0% (12,6 milhões de unidades), respectivamente.” (PNAD 2012, IBGE, p. 72)

Esta inclusão pelos bens duráveis deve sem dúvida continuar, pois não se concebe um domicílio sem geladeira, e muito menos sem luz, que era uma dimensão trágica de milhões de pessoas antes do Luz para Todos. Mas o impacto desta linha de atividades deve tornar-se menor, pelo nível alcançado. O importante aqui, é que conforme avança o nível de renda e a sociedade passa a ter acesso ao essencial, gera-se uma diversificação de demanda. Não é o volume de atividades que diminui, tanto assim que temos o menor desemprego da história, mas a sua composição que se desloca.

As pessoas passam a ter necessidade de melhorar o entorno da casa, em particular com saneamento, urbanização decente, infraestruturas de bairro, o conjunto das coisas que não se resolvem por consumo individual, e sim por consumo coletivo. Uma família não resolve sozinha a questão do esgoto ou dos alagamentos. E consumo coletivo exige políticas públicas. Um sistema de esgoto instalado gera muito bem-estar nas famílias, coisa que não é medida pelo PIB, e inclusive pode diminuí-lo ao reduzir as doenças e hospitalizações. Calcula-se que um real investido em saneamento reduz em 4 reais os gastos com saúde.

Economizar dinheiro racionaliza a composição dos nossos gastos, mas não aumenta o PIB. Aliás o que aumenta o PIB é jogar pneus e fogões velhos nos rios e córregos, pois isto obriga a contratar empresas para o desassoreamento, o que “ativa” a economia. Além do tamanho do PIB, aliás perfeitamente razoável na conjuntura (2,3%), temos de olhar para a qualidade do PIB.

As áreas como saúde e educação tornaram-se eixos muito mais importantes do gasto das famílias. Grande parte deste esforço passa sob forma de consumo coletivo através de serviços públicos – é o imposto convertido em renda familiar de forma indireta – e não tem impactos imediatos de aumento do PIB. O investimento que fazemos na educação dos jovens hoje é essencial, mas irá se reverter em melhor produtividade sistêmica dentro de dez ou quinze anos, quando este jovem se tornar mais produtivo.

As grandes infraestruturas que são objeto hoje de importantes investimentos têm características semelhantes. Uma ferrovia que reduz o custo tonelada-quilómetro do transporte de produtos representa hoje um sacrifício, mas amanhã significará maior produtividade e aumento do PIB. Investimentos também mobilizam recursos e aumentam o PIB, mas ainda sem os impactos de dinamização do conjunto de atividades produtivas de uma região que rompe o seu isolamento. É preparar o amanhã.

Para muitos, é estranho ver pleno emprego e forte avanço da qualidade de vida das famílias, frente a um PIB relativamente menor. Mas não há paradoxo, apenas uma mudança da composição inter-setorial das nossas atividades. A atividade econômica é muito mais do que shopping, linha branca e automóvel. Quanto mais avança a sociedade, maior é a proporção de consumo de bens imateriais como educação, saúde e cultura, e maior é a presença das atividades públicas. Sai simplesmente mais barato ter sistemas universais e gratuitos, e a universalização é essencial para a redução das desigualdades.

O Brasil está mudando, e rapidamente. Olhar com lentes antigas não ajuda. Está aumentando a dimensão das políticas sociais no conjunto das atividades econômicas do país, a economia criativa e o conhecimento em geral estão passando a ocupar o centro das atividades, infraestruturas integradoras estão redesenhando as relações entre os territórios. Não basta olhar para a linha branca e o Bolsa Família. O perfil de consumo está mudando. A convergência do aumento dos salários, da expansão da previdência, de inúmeros programas como Pronaf, Pronatec, Prouni, Territórios da Cidadania – são cerca de 150 programas de inclusão ao todo – está gerando uma nova realidade. Frente às necessidades, é muito pouco. Frente ao passado, é um despertar, e o caminho da inclusão, como vetor de dinamização do desenvolvimento, continua central.




Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Os-potenciais-dos-programas-antipobreza/4/30285

BALACLAVA DE SANGUE

Bomba atinge cabeça de cinegrafista





Por  Romeu Duarte
 

Ah, Candelária, tu, de tantas tragédias, reparaste como as pombas da tua praça alçaram vôo na hora do estouro? Um foguete na cabeça, uma câmera nas mãos, o miserável não teve a mínima chance. Os que escondem a face atrás de uma máscara de pano se escafederam tão ligeiro quanto se ajuntaram para manifestar seu ódio. Algo deu errado, não era esse o objetivo, foram longe demais? O certo é que agora há alguém gravemente ferido, jogado no chão, o sangue espesso no mosaico imundo. Perna, para que te quero, sujou, nessa hora o rabo é um relho. Os remanescentes poucos, os rostos crispados, apiedam-se do pobre diabo prostrado. “Parece o menino do Calabouço”, disse um senhor de idade, “Naquele tempo em que os revoltados mostravam a cara”.
A sirene da ambulância aguça a memória. Quando a coisa começou na fria Paulicéia, no ano passado, mesmo intolerante e violento, o movimento angariava simpatias. Como não protestar contra o aumento da passagem de ônibus, os serviços públicos ineficientes, a cidade inacessível, a truculência da polícia? O poeta dos resmungos defendia a ira do povo desorganizado nas ruas enquanto o cantor do abraçaço amarrava a camisa no semblante, os olhos raivosos à mostra, solidário com tudo aquilo. Gentis amigos de sempiternas doces maneiras defendiam no grito, no peito e na raça as ações dos ativistas até o deletar no Facebook. Sem patrulha, mas como estarão se sentindo agora? Rápidos no pólo oposto, chamando de terrorista quem antes era herói?
Para muita gente, vivíamos (vivemos) no negror da mais dura e cruel das ditaduras. A parada brasileira está tão ruim assim ou nos tornamos mais exigentes? Segue urgente para o hospital o cinegrafista ensangüentado, seu corpo estendido numa maca encardida, a vida por um fio. Vozes alteradas, culpas atiradas de parte a parte, o conflito não terminará aqui. Doravante, como serão vistas as manifestações? Atos legítimos de cidadãos contrariados em seus direitos ou safadezas comandadas por arruaceiros consumistas a soldo de interesses escusos? A justa reivindicação, então, poderá ser enquadrada como mera ação criminosa? Há quem deseje loucamente uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade? Muitas perguntas, nenhuma resposta, arre.
Quem cala sobre o teu corpo consente na tua morte. As pombas, assustadas, ainda não voltaram, não querem mais saber do chão. Quantas mãos dispararam o rojão assassino? Somente as dos garotos tatibitates, os tais do não sei, não vi, só estava passando, só fiz entregar, não era bem isso, pois é, pena, sinto muito? Talhada a ferro e fogo nas profundezas do corte. Chega a nota triste do passamento do ferido, o caixão coberto com a bandeira do Flamengo, mesmo time da viúva em lágrimas, comoção nacional. Sutil ironia: os que vociferavam por democracia, clareza e transparência, embora mascarados, atingiram mortalmente justo quem transmitia a notícia para todo o país. Quem cala morre contigo mais morto que estás agora. O horror, o horror.
Esquecida, junto ao poste no passeio, uma balaclava negra. Imposição do fero verão carioca neste Rio de Janeiro que continua lindo ou evidência de um fundo arrependimento? Na lembrança, a mancha de sangue do falecido no piso que lhe serviu de sudário. Que dia é hoje? Relógio no chão da praça, batendo, avisando a hora que a raiva traçou no tempo. Uma cruz negra, imensa, depositada sobre a areia da praia em honra ao que se foi, que poderia dizer, como o bardo desaparecido: Copacabana, esta semana o mar sou eu. O sol dardeja seus últimos raios nesta cidade de São Sebastião, mais flechado que nunca. O crepúsculo insinua: no incêndio repetido, o brilho do teu cabelo. Chega de metáfora: Sininho, acabou-se o pó de pirlimpimpim, the game is over.

Fonte: jornal O POVO, 17 de fevereiro de 2014. Foto - agência O GLOBO


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O CENTRO DE NOVO

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Praça do Ferreira. Fortaleza, Ceará, Brasil.

Por Joaquim Cartaxo

Nos últimos dias, o centro tradicional de Fortaleza voltou à agenda de debate dos problemas da cidade difundido como território “degradado” com a imagem de local sem prestígio, assinalado pelo caráter e frequência popular. Importante haver retornado, mas é preciso desfazer essa imagem de natureza ideológica porque o mesmo foi ocupado pelos pobres e há uma quantidade significativa de suas edificações em situação de quase-ruína. 
 Sublinhe-se que nas metrópoles brasileira o centro tradicional transformou-se em lugar de atendimento dos interesses e necessidades das camadas populares, porque as atividades de relevância econômica e as especializadas migraram para outros pontos da cidade com atributos de centro como os shopping centers. Assim sendo, o centro tradicional começa a se descaracterizar como local de frequência requintada, pois o comércio e os serviços de luxo deslocaram-se para outras áreas da cidade. Deslocamento causado pelas camadas de alta renda que abandonam o centro, depois difundem a ideia de degradação do mesmo e buscam consolidar a simbologia de que o “centro velho” foi substituído pelo “centro novo” próximo do lugar onde moram.
Em síntese: a dinâmica do crescimento metropolitano amplia as distâncias entre o centro tradicional e as novas localizações residenciais, aumenta as possibilidades de mobilidade das pessoas, faz surgir novas áreas de centralidade urbana. Nesse contexto, o centro tradicional se reduz ao atendimento do consumo popular.
Privilegiar o patrimônio cultural, melhorar a paisagem urbana, fortalecer as atividades do centro de Fortaleza são desafios a serem vencidos pelos governos e sociedade. Bom começo seria afirmá-lo como lugar que onde a maioria da população, as camadas populares, compra bens e serviços. Nesse passo, ações para esse bairro têm que visar os interesses e necessidades desse público que é quem garante a vitalidade do centro.

Joaquim Cartaxo é arquiteto urbanista e secretário de formação política do PT/CE.

Fonte: jornal O POVO, 10 de fevereiro de 2010.







O ARQUITETO E A APRENDIZ



Croquis da Catedral de Brasília. Por Oscar Neimeyer
Por Romeu Duarte

A Nearco Araújo

 Vai, menina, solta a linha de grafite pelo campo do papel manteiga em branco. Quem risca não rabisca, corre o risco e se arrisca nessa aventura de dar forma ao pensamento. Se a natureza fosse confortável, o homem não teria inventado a arquitetura, disse bem o bardo irlandês. Com esse lema na cabeça, não tenha medo: edifique e derrube paredes, erga pilares, estenda vigas, deite lajes, pavimente pisos, lance telhados, construa a moldura da vida humana. Este ofício que te ensino, novidade em teu viver, é tão velho quanto o desejo do homem de na Terra se estabelecer. Na Florença renascentista, um mestre do desenho, com a arte de construir, levantou uma cúpula oca sobre Maria em flor. O mesmo fazemos nós aqui agora, mesmo sendo humilde o nosso dever.  

Borda, menina, com teu traço cru na alva folha nua, esta visão do real, tão vera e tão tua. Desenhar é uma forma de alguém possuir as coisas do mundo, mesmo essa pessoa sendo, como tu, pobre de marré deci. Tens, entretanto, essa magia inata que une olho, cérebro e mão para desvendar o visível e revelar o invisível que só tu vês. Aproveita e refina esse dom para conceber abrigos, honrada missão que escolheste. Esse teu mister, belo e necessário, além de te exigir gostar das gentes, vai demandar de ti razão, sensibilidade e atenção perenes, a paixão pelos edifícios, o perder-se pelas cidades, esses enigmas de milhões de faces. Não te esqueces: Deus está nos detalhes, no gesto mais singelo. A parte diz do todo como o todo faz a parte, em toda parte.

Apaga sem receio, menina, com a borracha do perdão, os teus muitos erros, os que ora cometes e os tantos que ainda cometerás. Exatamente isso: o projeto é um palimpsesto, um ir e vir frenético de decisões, em que a linguagem verbal é trocada por mil esboços e croquis. Quem não o compreende, ao vê-lo feito, pensa que a idéia sempre esteve lá, jazendo fácil na fina espessura do suporte, à mercê de quem o quiser resgatar. Entretanto, é o arquiteto, com seu gênio, quem o traz à tona, num parto complexo e gratificante. Eternamente grávido, o herdeiro de Palladio não teme o experimento: com a matéria bruta do concreto, do aço e do tijolo constrói o sublime espaço de morar, o oco, o útero, o lugar. De mais a mais, sem menos nem mais, faz e refaz todo dia o seu sonho chão. 

Desculpa, menina, meu método de ensino e trabalho ultrapassado. Sem o auxílio dos algoritmos, computadores e ferramentas espetaculares, opero ainda como nas velhas oficinas do passado, nas quais, ao final dos longos e penosos expedientes, os rostos, as mãos e os braços dos artífices se mostravam marcados a carvão. Claro, não precisas seguir a minha maneira; logo terás a tua, feita à tua feição e gosto. Não rias, contudo, do esquadro de ângulo, do escalímetro, do gabarito de círculos, da régua paralela, da prancheta: são meus velhos companheiros de labuta, muito me ajudaram e ajudam, com eles fiz tudo o que me foi possível fazer. Dois riscos sobre esta prancha são ainda uma parede de tijolos, acionam indústrias, criam empregos, geram felicidade.

Sabe, menina, este nosso encontro lembrou-me de um que tive há muito tempo com um querido professor numa aula de desenho. “Não consigo desenhar o paralelepípedo”, falei-lhe, aperreado frente à minha impotência em relação à tarefa imposta. “Não consegues representar a pedra, aluno, porque não a conheces”, disse-me ele, com forte sotaque amazônico. “Para desenhá-la, precisas penetrá-la, conhecê-la por dentro, entender a sua constituição e finalidade”. Passei a refletir sobre a sutil advertência, que mais tarde se transformou numa lição de sabedoria. Aprender, sempre. Conselho? Como disse Frank Lloyd Wright, “dedicação, trabalho duro e uma incessante devoção às coisas que tu queres que aconteça”. Sim, são lágrimas de alegria. Seja feliz.   


Fonte: jornal O POVO, 10 de fevereiro de 2014.