Avenida Beira Mar, Fortaleza, Ceará, Brasil
Antes mesmo da primeira luz matinal, eles
se põem em marcha, confiantes em mais um dia. Animando a madrugada, eles descem
a pé, de carro, de magrela, de qualquer jeito à Beira-mar, seu concorrido
santuário. Vêm para cá rezar à sua maneira, numa celebração cuja igreja é o
corpo, seja ele atlético ou flácido. Quando o sol enfim dá as caras já os
encontra em pleno movimento, o suor em bagas correndo-lhes nas têmporas, no
rego das nádegas, nas batatas das pernas. Solitários, duplas, trios, pelotões,
andando, trotando, correndo. Bonés, óculos escuros, roupas coloridas, tênis
aerodinâmicos, os relógios cronômetros. Mourejando as colinas da líquida
esmeralda, um punhado de surfistas, seus fiéis parceiros de tantos amanheceres.
Se esse culto reside em cada arcabouço de
carne e osso que vem e que vai, dizem que é na cabeça que o milagre se dá,
sensação de leveza apolínea, a dor feliz das juntas moídas. Eu, dionisíaco
incorrigível, resto azedo da boêmia de anteontem, sorvo a reparadora mineral
com gás enquanto reparo nessa vigorosa procissão. Silente, indago: De que ou de
quem correm? De si mesmos? Para onde pensam que vão? Jamais saberão? Se, como
diz o Rosa, o real não está na saída ou na chegada, aqui também estaria no meio
da travessia, ou seja, tomando manso uma água de coco em frente ao Náutico? De
repente, ocorre-me que cá, nesta extensa, ensolarada e demandada pista, é
mister ver e ser visto, bater o ponto, dizer “turma boa, estou vivo, estou
aqui”.
Aquele que vem ali, lépido e fagueiro em
tropel de sete léguas, não foi o que sumiu com a fortuna da família? O que
passou anos desaparecido, dado até por morto? O sorriso cínico é o mesmo.
Celular colado ao ouvido, já fala em milhões a esta hora da manhã. Se um novo
negócio prepara, sua vitrine é o pé-de-borracha importado do ano em que acabou
de entrar. Ele não engana ninguém, as pessoas é que se enganam com ele. Passar
bem, amigo. Feliz de vê-los por aqui. O senhor e a senhora vão bem? Claro, o ar
marinho, além de uma delícia, é um santo remédio, cura até câncer, Desculpem-me,
não sabia, falei de corda em casa de enforcado, mas foi com boa intenção. Certo,
em sociedade, tudo se sabe ou se acaba sabendo. Forte abraço, até mais ver.
O que estou fazendo por aqui neste horário?
Digamos que ver gente bonita se exercitando abre o meu apetite para o café da
manhã. A beleza, mesmo inalcançável, é sempre inspiradora. Clube dos
cafajestes? Acho que não me fiz entender. Tudo bem, beijos, que a corrida lhe
seja leve. Que bom revê-lo, amigo, depois de tantos anos. Foi mesmo? Que pena.
Agora é não desanimar, ela nunca gostou mesmo de você, parta para outra, conte
comigo. Seresta no Alicate no sábado à noite para recomeçar? Não vai dar, na
data vou a uma cerimônia de primeira comunhão no Cantinho do Frango. Sem problema,
estou ao seu lado, bola pra frente. Tudo isso acontecendo e o vendedor de
lanche, com sua buzina, acordando o último bêbado da orla marítima de
Fortaleza.
Pois é, além de não dirigir, não sei nadar,
não gosto de correr e bicicleta nem pensar. Quando o tsunami chegar, arrisca
ser um estrago monstro. Você sempre com suas piadas, até mais. Não, compadre, perdoe,
não tenho cigarro nem dinheiro e crack só o Magno Alves. Ok, para startar, me
manda o link, que eu passo o scanner e envio on line, de boa, brother. Meu
esporte predileto? Observação de humanos parados ou em trânsito, o que ora
pratico neste recorte do mundo, inventando-lhes papéis e trajetórias,
registrando-lhes as silhuetas, assumindo ou criando suas falas, percorrendo
seus passos, neste misto de teatro e balneário, ambos patéticos, na Beira-mar,
entre os tapumes que me escondem, onde nem os sorrisos me respondem.
Romeu Duarte é arquiteto urbanista
Fonte: jornal O POVO - 23 de setembro de 2013