quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva - Doutor Honoris Causa – Sciences Po - Paris, França - 27 de setembro de 2011

Minhas amigas e meus amigos,


É uma grande honra, para mim, receber o título de Doutor Honoris Causa do Instituto de Ciências Políticas de Paris. Honra que se torna ainda maior por eu ser o primeiro latino-americano a recebê-lo.


Estou profundamente grato à direção da Sciences Po e a todos os seus professores, funcionários e alunos por me conferirem uma láurea tão prestigiosa.


Esta casa, a um só tempo humanística e científica, é reconhecida e admirada no mundo todo por seus elevados propósitos e pela excelência do seu corpo docente e discente.


É uma instituição que representa de modo exemplar o compromisso da França com a liberdade intelectual, a dignidade da política e o aperfeiçoamento permanente da democracia.


Representa essa França consciente de suas conquistas materiais e espirituais, ciosa de seus valores civilizatórios, mas nem por isso menos aberta a povos e mentalidades diferentes, à compreensão do outro.


Essa França insubmissa e libertária que, durante séculos, inspirou – e continua, de alguma forma, inspirando – a trajetória de muitos países, entre eles o Brasil.


Essa França que, desde o século 18 até os dias atuais, é tão relevante para o Brasil, seja no terreno das ideias políticas e sociais, seja na esfera da educação e da cultura, seja no que se refere às parcerias produtivas e tecnológicas.


Minhas amigas e meus amigos,


Mais do que um reconhecimento pessoal, acredito que este título de Doutor Honoris Causa é uma homenagem ao povo brasileiro, que nos últimos anos vem realizando, de modo pacífico e democrático, uma verdadeira revolução econômica e social, dando um enorme salto histórico rumo à prosperidade e à justiça. Depois de prolongada estagnação, o Brasil voltou a crescer de modo vigoroso e continuado, gerando empregos, distribuindo renda e promovendo inclusão social.


Deixamos para trás um passado de frustrações e ceticismo. Os brasileiros e as brasileiras voltaram a acreditar em si mesmos e na sua capacidade de resolver problemas e superar obstáculos, por mais difíceis que sejam.


Graças a um novo projeto de desenvolvimento nacional, com forte envolvimento da sociedade e intensa participação popular, conseguimos tirar 28 milhões de pessoas da miséria e levamos 39 milhões de pessoas para a classe média, no maior processo de mobilidade social da nossa história.


Em oito anos e meio foram criados 16 milhões de novos empregos formais. O salário mínimo teve um aumento real de 62%, e todas as categorias de trabalhadores fizeram acordos salariais com ganhos acima da inflação.


Além disso, implantamos vários programas de transferência direta de renda, dos quais se destaca o Bolsa Família, que é o principal instrumento do Fome Zero e, no final do ano passado, beneficiava 52 milhões de pessoas.


Dessa forma, a desigualdade entre os brasileiros atingiu o menor patamar em 50 anos. Nos últimos dez anos, a renda per capita dos 10% mais ricos aumentou 10%, enquanto a dos 50% brasileiros mais pobres teve um ganho real de 68%.


O consumo se ampliou em todas as classes, mas no segmento popular cresceu sete vezes.


Os pobres passaram a ser tratados como cidadãos. Governamos para todos os brasileiros e não apenas para um terço da população, como habitualmente acontecia.


Acreditamos firmemente que o desenvolvimento econômico precisa estar a serviço da redução das desigualdades sociais, sem paternalismo, promovendo a inclusão das pessoas mais pobres à plena cidadania.


Acreditamos, igualmente, que isso pode, deve e será feito sem que se descuide do equilíbrio macroeconômico, combatendo com firmeza a inflação.


Minhas amigas e meus amigos,


Ao mesmo tempo que resgatávamos grande parte de nossa dívida social, trabalhamos para modernizar o país, preparando-o para os desafios produtivos e tecnológicos do século 21.


Investimos fortemente em educação, pesquisa e desenvolvimento. Orgulho-me de ter criado 14 novas universidades federais e 126 extensões universitárias, democratizando e interiorizando o acesso ao ensino público.


Também lançamos o Reuni, um programa para fortalecer o ensino público universitário, com a valorização dos docentes.


Ele contribuiu para que dobrássemos o número de matrículas nas instituições federais.


Mas não ficamos restritos a isso e instituímos o Prouni, um sistema inovador de bolsas de estudo em universidades particulares. Com ele, garantimos que 912 mil jovens de baixa renda pudessem cursar o ensino superior.


E a oportunidade não foi desperdiçada: os jovens com bolsas do Prouni têm-se destacado em todas as áreas, liderando em muitos casos os exames nacionais de avaliação feitos pelo Ministério da Educação. Ou seja, bastou uma chance e a juventude brasileira deu firme resposta ao mito elitista segundo o qual a qualidade é incompatível com a ampliação das oportunidades.


Também me orgulho muito de termos inaugurado 214 novas escolas técnicas federais, que criaram possibilidades inéditas de formação profissional para a juventude.


A boa qualidade do ensino na rede de escolas técnicas federais também abre as portas para as universidades, mesmo para quem trabalha durante o dia inteiro, porque durante o meu governo aumentamos o número de vagas nos cursos universitários noturnos.


Esses jovens têm que continuar sonhando, têm que lutar para conquistar o doutoramento, para trabalhar nos diversos centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico que existem no Brasil.


Deixamos de considerar a educação como um gasto para tratá-la como investimento que muda a vida das pessoas e do país. Por isso, em meus dois mandatos, triplicamos o orçamento do Ministério da Educação, que saltou de 17 bilhões de reais para 65 bilhões de reais em 2010.


Essas mudanças eram imprescindíveis, pois a garantia de acesso à educação de qualidade, da pré-escola aos cursos de pós-graduação, é um dos principais instrumentos para promover a igualdade social, combater a pobreza e assegurar um desenvolvimento econômico, científico e tecnológico sustentável em longo prazo.


A educação foi colocada como prioridade estratégica para o país. O investimento público direto em educação passou de 3,9% do Produto Interno Bruto em 2000 para 5% em 2009. E, agora, a presidenta Dilma Rousseff assumiu o compromisso de ampliar o investimento em educação progressivamente até atingir 7% do Produto Interno Bruto.


Minhas amigas e meus amigos,


O Brasil já tem muito a mostrar no segmento de pesquisa e desenvolvimento. A Lei da Inovação, aprovada em dezembro de 2004, incentivou as universidades a compartilhar seus projetos de pesquisa e desenvolvimento com as empresas públicas e privadas, para alavancar a inovação tecnológica no ambiente produtivo.


O número de cientistas envolvidos em pesquisa e desenvolvimento passou de 126 mil em 2000 para 211 mil em 2008. E o número de patentes depositadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) cresceu de 21 mil em 2000 para 280 mil em 2009.


Além disso, o governo federal destinou 41 bilhões de reais ao setor de pesquisa e inovação no período de 2007 a 2010, através do Programa de Aceleração do Crescimento.


Minhas amigas e meus amigos,


Uma das preocupações do meu governo – e que continua a ser um firme compromisso da presidenta Dilma – foi garantir que o crescimento econômico e os investimentos estruturantes fossem sustentáveis do ponto de vista ambiental.


Nos últimos anos, o Brasil superou a falsa contradição que opunha o desenvolvimento à sustentabilidade ambiental. Nesse período, a taxa de desmantamento caiu 75%.


Em nosso governo, fixamos como meta reduzir as emissões de CO2 entre 36% e 39% até 2020. Esse compromisso foi incorporado à Política Nacional de Mudanças Climáticas, apresentada em Copenhague, em dezembro de 2009, e posteriormente transformada em lei pelo Congresso Nacional.


O Brasil é uma referência no enfrentamento dos desafios ambientais do século 21, pois é responsável por 74% das unidades de conservação criadas no mundo desde 2003. Também alcançamos recentemente o menor nível de desmatamento dos últimos 22 anos.


Minhas amigas e meus amigos, os avanços que conquistamos nos últimos anos foram possíveis porque praticamos intensamente a democracia. Não nos limitamos a respeitá-la – o que é um dever –, mas levamos suas possibilidades ao limite, promovendo um amplo processo de participação social na definição das políticas públicas.


Estabelecemos uma nova relação do Estado com a sociedade, na qual todos os setores sociais foram ouvidos, mobilizados, e puderam discutir não somente com o governo, mas também entre eles próprios. Multiplicaram-se os canais de interlocução da sociedade com o Estado, o que contribuiu de modo decisivo para que crescimento econômico e desenvolvimento social caminhassem juntos.


Para tanto, realizamos 74 conferências nacionais entre 2003 e 2010, precedidas por reuniões em níveis municipal e estadual, que contaram com a presença de cerca de 5 milhões de pessoas.


Discutimos e aprofundamos nessas conferências temas importantes: do meio ambiente à segurança pública; dos transportes à diversidade sexual; dos direitos dos indígenas às políticas de telecomunicações; da igualdade racial à política nacional de saúde, dentre muitos outros.


Conselhos de políticas públicas, com ampla representação popular, foram criados junto a todos os ministérios.


Em outras palavras, apostamos decididamente na política. Porque sempre acreditamos na força da política como promotora da emancipação individual e coletiva.


A participação política é o melhor antídoto contra a alienação e as tentações autoritárias.


Eu próprio sou produto da política. A luta sindical me deu a convicção de que era necessário incorporar os trabalhadores às decisões políticas.


Foi por isso que, em 1980, criamos o Partido dos Trabalhadores, que em menos de 20 anos tornou-se o maior partido de esquerda da América Latina e chegou à Presidência da República. Também construímos a maior a central sindical da América Latina, a Confederação Única dos Trabalhadores.


Tenho a plena convicção de que os problemas da sociedade só podem ser resolvidos com mais democracia e mais envolvimento da sociedade no exercício do poder.


Minhas amigas e meus amigos,


O Brasil não está sozinho nessa trajetória virtuosa, que reuniu democracia, desenvolvimento econômico e justiça social.


A esperança progressita do mundo, hoje, navega no vento que sopra do Sul.


A América do Sul não é mais o estuário dos problemas do mundo, e sim a mais promissora fronteira da luta pela justiça social em nosso tempo.


Sem os países em desenvolvimento, não será possível abrir um novo ciclo de expansão que combine crescimento, combate à fome e à pobreza, redução das desigualdades sociais e preservação ambiental.


No momento em que se está constituindo um mundo multipolar, a América do Sul afirma a sua presença no plano internacional, renovando a confiança em si e na capacidade de seus povos de construir um destino comum de democracia e crescimento econômico com inclusão social.


Vivemos numa região de paz. Não há ódio religioso entre nós. Os governantes de todos os nossos países foram eleitos em pleitos democráticos e com ampla participação popular. A democracia é o nosso idioma comum.


Minhas amigas e meus amigos,


Avançamos muito no Brasil nos últimos anos. Ampliamos a inclusão social e a democracia se fortalece cada vez mais. Elegemos, pela primeira vez na nossa história, uma mulher para a Presidência da República.


Fizemos muito, mas ainda há muito por ser feito. E o governo da presidenta Dilma Rousseff assume esta responsabilidade.


Lançou o programa Brasil sem Miséria para erradicar totalmente a extrema pobreza.


Fortaleceu a área da educação, ao ampliar o programa e ensino técnico e aumentar o número de bolsas de estudos no exterior.


O lançamento de uma nova política industrial, com o programa Brasil Maior, fortalecerá a inovação e a competitividade.


Por último, quero enfatizar que o conhecimento e a informação são cada vez mais importantes para o aprimoramento espiritual da Humanidade e também para viabilizar o progresso econômico e o bem-estar dos povos.


O governante que não enxerga isso, não está preparado para governar uma Nação. Governante que não sonha não transmite esperança. Agradeço novamente à Science Po por ter sido agraciado o título de Doutor Honoris Causa e estou honrado por fazer parte do seleto grupo de pessoas que mereceram esta honra.


Muito obrigado.



terça-feira, 27 de setembro de 2011

Dilma presidenta


Por Maria Rita Kehl

Que diferença representa para o Brasil a eleição, pela primeira vez na nossa história, de uma presidente mulher? No plano simbólico, é evidente que a escolha de Dilma Roussef revela a ausência, ou pelo menos a irrelevância dos preconceitos sexistas na determinação do voto de grande parte dos brasileiros. Também não houve, em público, manifestações machistas em reação aos primeiros problemas enfrentados pela presidente. Passados quase oito meses desde a posse, os recentes escândalos em alguns ministérios, os primeiros sinais de inflação e o risco de desaceleração econômica provocaram uma queda de oito pontos na aprovação da presidente, que ainda assim continua mais alta do que a de todos os seus antecessores em início de governo, desde a volta das eleições diretas.

Grosso modo, a escolha de Dilma parece ter sido mais pautada por razões políticas e interesses de classe do que pelo imaginário de gênero. Se assim foi, o mérito é todo dela. Durante os oito anos de seus dois governos, o presidente Lula perdeu grandes oportunidades de politizar os eleitores ao definir a relação necessariamente conflituosa entre a sociedade e seus governantes a partir de metáforas ligadas à vida familiar. Fiel ao seu estilo de homem cordial, na acepção de Ribeiro Couto/ Sérgio Buarque de Hollanda, Lula desde o início se apresentou como pai dos brasileiros. Antes da campanha de 2010, já apresentava sua futura candidata como a “mãe do PAC”. Dilma comprou o rótulo por conveniência, mas teve o mérito de não encarnar o estereótipo maternal que faria par com o estilo carismático e paternalista de Lula.

Quanto à identificação de Dilma com as causas feministas, vale lembrar que a presidente, em toda sua longa trajetória política – se contarmos desde os anos de militância no grupo Var-Palmares, na década de 1970 – nunca foi uma típica militante feminista. Como outras raras mulheres independentes de sua geração, as opções políticas da jovem Dilma Roussef pautaram-se antes por causas universais – liberdade, igualdade, socialismo – do que pelas lutas de gênero que, no Brasil, só se tornaram mais expressivas depois da derrota da luta armada. Quando as pioneiras das causas feministas começavam a levantar suas bandeiras, por aqui, a militante “Wanda” estava na cadeia.

Os preconceitos sexistas mais pesados contra ela surgiram durante a campanha, não por parte de eleitores, mas dos adversários políticos. O modo violento como a campanha de José Serra tentou explorar a polêmica sobre o aborto, a meu ver, não teria sido o mesmo com um candidato homem. Ao tentar caracterizar a possível simpatia de Dilma pela legalização do aborto como um grave de delito de opinião, Serra apostou na convicção popular de que a mulher que não criminaliza o aborto é um monstro que mata criancinhas. Dilma não enfrentou a polêmica com a seriedade que o caso exigia, mas pelo menos não desceu tão baixo. Em todo caso, nunca saberemos até onde a oposição teria chegado se a notícia de um suposto aborto de Mônica Serra não tivesse vindo à baila.

Outro preconceito que se manifestou durante a campanha foi o de que sendo mulher, a candidata não teria pulso firme para segurar os “radicais do PT”. Que saudades do tempo em que o PT contava com alguns radicais a incomodar a geléia geral do Congresso. No atual estado da arte, o governo Dilma corre mais risco de se descaracterizar em função do excesso de aliados ao centro e à direita do que pela pressão de supostos radicais à esquerda. Além do onipresente PMDB, com sua prática de toma-lá-dá-cá que já se incorporou ao folclore político do jeitinho brasileiro, a barca do governo terá que acolher agora os interesses do novo PSD, criado pelo prefeito de São Paulo para abocanhar cargos e supremacias junto ao governo Federal.

Será mais difícil a uma mulher defender-se da sedução e da chantagem de tais aliados? Não parece. Dilma já sabe que, com amigos assim, ninguém precisa de inimigos. A recente faxina (trabalho de mulher?...) executada pela presidente no Ministério dos Transportes, seguida do embate com a “banda podre” do PMDB a fim de eliminar os cabides de emprego na Agricultura e a corrupção no Turismo, provocaram, como sempre, ameaças de perda de apoio por parte da base dita “aliada”. A forma mais dura com que a primeira mulher presidente do Brasil tem se posicionado frente à chantagem de tais aliados também pode ser explicada pela consciência da desvantagem de seu estilo pessoal em comparação com o carisma popular que permitiu ao presidente Lula ser leniente com a corrupção sem perder prestígio entre eleitores, nem (conseqüentemente) apoio entre a classe política.

Na via oposta, penso que os preconceitos favoráveis a uma candidata mulher também não ajudam a politizar o debate. Seria uma presidenta mais apta a “cuidar com zelo materno” de seu povo? Escolho ao acaso exemplos brasileiros que contrariam tal premissa. Entre as poucas governadoras brasileiras, temos Roseana Sarney, filha de cacique político que governa o Estado com o pior IDH do país. No sul, ex- governadora Ieda Crusis, em 2009, colocou o aparato militar da PM do Estado para intimidar os participantes da festa dos 25 anos do MST. Maternais? Protetoras dos fracos e oprimidos? No Senado, basta mencionar o estilo fálico de Catia Abreu, ativa defensora dos direitos do agro negócio contra os ambientalistas que tentam preservar o que restou das florestas do Mato Grosso e em parte da Amazônia legal.

A própria Dilma, se fosse mais “maternal”, teria defendido com maior firmeza a qualidade de vida dos operários da Usina de Jirau, submetidos a condições sub humanas no canteiro de obras da Camargo Correia. Ou tentaria conciliar a brutal agenda desenvolvimentista com medidas efetivas de preservação da natureza, em prol da saúde das próximas gerações. O compromisso com as causas feministas poderia levar Dilma Roussef a se manifestar de maneira mais clara no debate sobre a descriminalização do aborto, mas parece que o escândalo que se promoveu em torno do assunto, durante a campanha, contribuiu para transformar o aborto numa espécie de tabu político para a atual gestão.

Outras questões relativas à saúde das mulheres, no entanto, ainda podem ser contempladas no governo Dilma. Os casos mais óbvios seriam novas políticas de proteção à maternidade, com ênfase no amparo às mães adolescentes. Além disso, toda e qualquer melhoria no atendimento à saúde de maneira geral beneficiaria as mulheres, acostumadas a cuidar não apenas da saúde dos filhos, mas também de pais, sogros e maridos. Ainda há tempo para esperar da primeira mulher presidente do Brasil medidas que diminuam a desigualdade de gênero no país, sobretudo nas classes mais baixas.

Essa esperança deve-se ao fato de Dilma, em sua trajetória pessoal e política, ter escolhido as alternativas progressistas que se apresentaram à sua geração. Afinal, a característica mais marcante da presidente é sua longa trajetória como militante radical de esquerda. Este segundo aspecto de sua biografia coloca o país diante de um fato espantoso, bem menos alardeado na imprensa: o de que há menos de quatro décadas, a atual chefe das Forças Armadas estava pendurada no pau de arara em uma dependência clandestina desse mesmo Exército, seminua, a levar choques elétricos, pancadas e socos até o limite da exaustão, em conseqüência de sua participação na luta contra a ditadura. Ali, segundo entrevista concedida em 2009 para o blog do Luis Nassif, a militante “Wanda” aprendeu a “mentir adoidado” para defender os companheiros que ainda estavam em liberdade. Ali, freqüentemente perdeu a noção de tempo entre uma sessão e outra, jogada sem roupas no chão de um banheiro frio para refletir melhor se não seria o caso de “tomar juízo” e delatar alguém. O pior da vida no presídio, disse Dilma na entrevista, eram os períodos de espera, sem saber quando e como seria o próximo round com os torturadores.

Por conta deste episódio, Dilma Roussef conhece o valor inestimável da solidariedade entre companheiras de prisão, homenageadas por ela em um dos momentos mais emocionantes da festa da posse. “Devo grande parte de ter superado (...) e agüentado (a tortura) às minhas companheiras de cela”, declarou Dilma a Luis Nassif na entrevista de 2009, ao mencionar o recurso inteligente e corajoso inventado por elas para “dessolenizar” o medo da tortura através do humor. Cada vez que uma prisioneira era levada para o interrogatório, as outras piscavam um olho cúmplice e ironizavam: “não se preocupe, companheira. Se você for torturada a gente denuncia...”

Graças ao que aprendeu com essa experiência, se é que se pode escrever “graças” num caso assim, Dilma teria desenvolvido a capacidade de manter sangue frio diante do torturador, a calcular o que podia ser dito porque já era sabido e o que deveria ser calado com falsa tranqüilidade, sem nunca afrontar o inimigo para não aumentar sua fúria. Por ironia, não do destino, mas da política, é possível que o exercício democrático do poder venha a exigir que a presidente recorra, no presente, aos mesmos recursos de resistência que soube desenvolver em sua sinistra temporada nos porões da ditadura. Astúcia e sangue frio podem lhe valer mais do que a força, nas inúmeras vezes em que for encostada contra a parede pelos aliados do governo, caso decida permanecer menos leniente com a corrupção e com o cinismo palaciano do que seu antecessor cordial.

Muito mais significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser governado por uma mulher é ter uma presidente que conheceu, por dentro e na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. Nesse quesito, a posição tíbia dos sucessivos governos brasileiros frente à ala conservadora do Exército envergonha o país diante do mundo, em particular a América Latina. De Dilma, que afinal decidiu-se a substituir o sinistro Nelson Jobim no Ministério da Defesa, espera-se uma posição decisiva a favor da abertura da investigação sobre os desaparecidos políticos do governo militar, assim como o apoio claro à decisão de tornar públicos os nomes dos assassinos e torturadores, praticantes de crimes de Estado não contemplados pela Lei da Anistia.

Ao fazer valer o direito das famílias dos militantes assassinados e desaparecidos, a presidente alcançaria também o efeito de prevenir a perpetuação dos assassinatos de jovens das periferias brasileiras por policiais militares a quem, até hoje, nenhum governante disse com firmeza que tais práticas não seriam mais admitidas por aqui. O Brasil foi o único país da América Latina que encerrou uma ditadura sem julgar publicamente nem punir seus torturadores. Indiretamente, os termos em que se negociou a lei da Anistia por aqui funcionaram como um aval para a perpetuação da violência do Estado. No livro O que resta da ditadura (org. Edson Telles e Vladimir Safatle, Ed. Boitempo) a procuradora Flavia Piovesan cita pesquisa feita pela norte-americana Kathryn Sikkink onde se revela que o julgamento dos crimes contra direitos humanos serve para fortalecer, e não para enfraquecer o Estado de Direito. Ainda segundo a pesquisa, depois do fim do período militar no Brasil, a violência policial tornou-se maior do que a praticada na Argentina durante a ditadura. De uma presidente que foi presa política por ter lutado em favor das liberdades democráticas se espera que atue decisivamente para condenar, no passado, e eliminar no presente, a violência dos agentes do Estado que a sociedade, envergonhada, acostumou-se a considerar como um traço indelével da “cultura” brasileira.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".

Artigo publicado originalmente no blog da Maria Rita Kehl http://www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=326



A CIDADE POLICÊNTRICA






Por Joaquim Cartaxo

Comparando o arranjo de atividades socioeconômicas do centro tradicional e do shopping center quanto à função comercial se anota que no primeiro esse arranjo é construído conforme a dinâmica dessas atividades, ao passo que no segundo é imposto aos comerciantes pelos empreendedores com base em pesquisas mercadológicas. Em um centro tradicional, por exemplo, o comerciante decide onde localizará o seu estabelecimento, diferentemente do shopping center em que a localização, a comunicação visual, as normas de segurança e o horário de funcionamento são determinados pelo promotor imobiliário. Tal determinação significa o predomínio do capital imobiliário e financeiro sobre as atividades de comércio varejista e de serviços.


Outra diferença entre o centro tradicional e o shopping center encontra-se no tempo de constituição de cada um. Produzido por dezenas de comerciantes, um centro de cidade gasta muito tempo para ser implantado e a instalação dos estabelecimentos ocorre em edifícios preexistentes, minimizando seu impacto nas circunvizinhanças que os absorvem e se transformam lentamente. Já um shopping center, sob a lógica de negócio imobiliário, é construído em um ciclo curto como um único empreendimento, visando proporcionar o retorno do investimento o mais rápido possível, ignorando a vizinhança, que não tem tempo de se adaptar ao impacto provocado.


Dado o crescimento urbano, a cidade com um único centro concentrador de atividades socioeconômicas, comparado ao não-centro, está sendo substituída por uma cidade onde se ampliam as distâncias entre o centro tradicional e as novas localizações residenciais; surgem novas áreas de centralidade do tipo shopping centers; aumentam as possibilidades de mobilidade das pessoas, surgem outras forma de compra, além do contanto direto, e o centro tradicional se reduz ao atendimento do consumo popular. Desse modo, surge a cidade policêntrica.

Joaquim Cartaxo é arquiteto e mestre em planejamento urbano e regional.
Publicado originalmente em O POVO 26/09/2011.


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Briga de foice no escuro


Por Maria Inês Nassif

Tem lógica o clima de guerra entre PT e PMDB, aliados ao governo federal, em torno das eleições municipais do próximo ano. Assim como as bancadas dos partidos tradicionais tendem a aumentar se eles estiverem com o governo, e a diminuir na oposição, a base municipal obedece ao mesmo movimento. É o espólio da oposição que está em disputa entre os dois partidos e, mais do que isso, a disputa entre eles pelos votos da população mais pobre, capturada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em suas gestões e disputada pelos três partidos maiores da base governista: PT, PMDB e PSB.

A exemplo do que ocorre com as suas bancadas federais, o PT é o único que mantém um crescimento contínuo do número de prefeitos, quer no governo, quer na oposição. De 2004 para cá, quando disputou eleições municipais no comando do governo federal, a legenda não apenas aumentou a quantidade de prefeituras, como tornou-se atraente às bases municipais dos outros partidos. Nas eleições de 2008, todos os que obtiveram pelo menos 1% dos votos válidos perderam prefeitos para o PT, exceto o PSB, que tirou quatro do seu maior aliado, em relação às eleições de 2004, e não perdeu para nenhum. O PSB, todavia, não foge à regra de inchar no governo e desidratar na oposição. O PMDB, em 2006, só perdeu municípios para o PT (33 prefeitos) e para o PSB (18), partidos que se expandiram principalmente no Nordeste, em especial sobre as suas bases e as do ex-PFL.

De 2004 para 2008, as duas eleições que ocorreram no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a redução das bases municipais dos partidos de oposição, antes aliados ao governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, foi alarmante. A situação pior em termos reais é a do DEM, ex-PFL. Em termos percentuais, a do PPS.

Das eleições de 1996 para as de 2000, quando o PFL usufruia da condição de aliado preferencial do governo peessedebista, passou de 937 para 1027 prefeitos; em 2004, já no governo petista, reduziu seu número de prefeituras para 791; nas eleições seguintes, para 500. Segundo estudo de Octavio Amorim Neto (FGV) e César Zucco (Iuperj), "As eleições de 2008 e o momento 'conservador' da política brasileira" (citado no artigo de Sérgio Quintella de março de 2009, "As eleições de 2008: conclusões e prognósticos"), o hoje DEM perdeu prefeituras para todos os outros partidos, exceto para o PPS. O PMDB levou 66 prefeituras da legenda conservadora; o PSB, 37; o PT, 38; o PP, 16; o PDT, 20; o PTB, 23; e o PR, 31. O partido perdeu até para o seu aliado preferencial, o PSDB, 23 prefeituras.

O PSDB perdeu prefeitos principalmente para os três maiores partidos da base aliada: 28 para o PSB, 34 para o PT e 36 para o PMDB, além de 8 para o PTB. Não teve enorme queda porque subtraiu prefeitos de seus aliados: 23 do DEM e 19 do PPS. É a chamada autofagia. O ex-PCB, por sua vez, perdeu de todo lado: do governo e da oposição, inclusive para o aliado DEM.

Os números de 2008 indicavam claramente o rumo que as eleições federais tomariam, dois anos depois. Segundo os mesmos autores, em 1996 o PT elegia 4 prefeitos nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste para cada um eleito no Norte e no Nordeste. Em 2008, esta razão tinha caído para 1,7. O partido de Lula abriu espaço nos Estados mais pobres, em especial os do Nordeste, e perdeu nos mais ricos, das regiões Sul e Sudeste.

O PMDB, embora seja, estourado, o partido com maior número de prefeitos, compete com o PT no Nordeste e com o PSDB no Sudeste e no Sul. Em São Paulo, que já foi reduto peemedebista, o partido sangrou de todos os lados, depois do racha que deu forma ao PSDB, em 1988. O PSDB avançou sobre o eleitorado mais rico e intelectualizado do Estado, que era peemedebista antes de existirem os tucanos; o PMDB ficou com a base de Orestes Quércia, que definhou até se tornar uma força exclusivamente municipal.

Nas últimas três eleições municipais, todavia, o partido vem perdendo espaço no Estado, aos poucos e sempre. Em 1996 tinha 109 pefeitos; em 2004, ganhou mais dois; em 2004, desceu para 90; em 2008, caiu para 70 deputados. Esta será a primeira eleição municipal sem a liderança de Orestes Quércia, que morreu no ano passado e era quem controlava o partido no interior paulista. O vice-presidente Michel Temer tenta ganhar essa estrutura, sem a qual perde peso relativo no partido nacional.

A base municipal do PMDB paulista é a única coisa que sobrou do partido no Estado em que já foi mais forte: depois do racha do PSDB, o quercismo não elegeu nenhum governador ou senador. Sua bancada federal hoje tem um único deputado. A redução do número de prefeitos acontece na proporção direta do aumento dos prefeitos do PSDB, do PT e até do DEM.

As eleições do próximo ano definem em que proporção PT e PMDB avançam sobre o eleitorado lulista no Norte e no Nordeste - uma disputa que também é autofágica, pois os dois partidos estão abrigados na mesma base parlamentar que apoia, a nível federal, a presidenta Dilma Rousseff.

Definem também a posição do partido saído da costela do DEM, o PSD, que vai para as urnas agora como governo. A nova legenda tem que avançar sobre as bases do DEM, do PSDB e do PMDB para firmar-se como partido. O PSDB, por sua vez, tenta estancar possíveis sangrias para outros partidos nas regiões menos desenvolvidas, sob pena de fixar-se como um partido das regiões Sul e Sudeste. O PT tem que ganhar espaço nessas regiões, sob pena de virar um partido nordestino. É muita briga para 2012, entre aliados e oposicionistas. Vai correr ainda muito sangue.


(*) Colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5210

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Carta às esquerdas


Por Boaventura de Sousa Santos

Livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação de algumas ideias. A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.

Não ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante.

Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação?

As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atores e linguagens que as esquerdas não puderam entender.

Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias:

Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo.

Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, ele a reduz à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.

Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas).

Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente.

Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito.

Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar).

Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um patrimônio das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar.

Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas.

Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.

Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.

*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/artigos-e-debates/1917-carta-as-esquerdas

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O inferno astral do neoliberalismo







O velho liberalismo romântico


O neoliberalismo é uma ideologia, uma visão de mundo. Mais precisamente, é uma visão de mundo adepta do individualismo, da competição, do Estado mínimo e da primazia do mercado, o que justifica sua filiação ao velho liberalismo. O que havia de novo nesse liberalismo?

O velho liberalismo de Adam Smith reservava funções claras ao Estado, mesmo que sumárias, como a defesa do território, a proteção (que hoje preferimos chamar de segurança pública), o recolhimento de impostos e a política monetária. Mas nenhum liberal clássico, ao defender o indivíduo, deixava de olhar a sociedade como um todo. A liberdade individual supostamente promoveria o bem estar da sociedade. Smith externava preocupação com o fato de que seus concidadãos, que vestiam o mundo, estavam em farrapos.

Para o neoliberalismo, porém, não existe sociedade; o que existe são indivíduos (frase de Margareth Thatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido). Não existe serviço público que não possa e não deva ser prestado por empresas privadas (frase de David Cameron, atual primeiro ministro britânico).

Para o liberalismo clássico, as corporações eram um problema a ser atacado. “A riqueza das nações”, de Adam Smith, criticava a proteção estatal às companhias comerciais, que exerciam atividades mercantis de forma monopolística, financiadas e escoltadas com recursos públicos. Para o novo liberalismo, as corporações são “a firma” e são equiparadas aos indivíduos. São pessoas jurídicas e têm por trás de si acionistas (indivíduos). Ao contrário da versão original, para o neoliberalismo a riqueza dos indivíduos é apátrida, e não uma riqueza “das nações”.

Outro fator de novidade do neoliberalismo era a globalização, uma marcha tida como inexorável para o domínio absoluto do globo por essas grandes corporações (comerciais, industriais, mas sobretudo financeiras). Bem diferente da ideia de divisão internacional do trabalho, que tinha como base as nações e o trabalho, e não as empresas e os fluxos financeiros. Romanticamente, Smith apontava um caminho para cada país encontrar seu lugar ao sol, produzindo de acordo com sua vocação. Deve-se dar um desconto ao romantismo de Adam Smith, pois ele era contemporâneo da poesia de Lord Byron, da música de Beethoven, da pintura de Delacroix. O mundo respirava romantismo por todos os lados e parecia que o progresso salvaria a todos.

A visão do neoliberalismo não é nada romântica. Os neoliberais são realistas até o último fio de cabelo. Eles são herdeiros da mutação genética introduzida no velho liberalismo pelo darwinismo social de Herbert Spencer, na segunda metade do século XIX. Sua vinculação a Friedrich Hayek tem traços claros que os colocam mais como apóstolos da lei do mais forte do que da lei do livre mercado.

Ascensão e queda do neoliberalismo


A construção do neoliberalismo desenrolou-se aos soluços, com inúmeros sobressaltos. Ele sobreviveu em estado vegetativo por décadas, até ganhar uma dimensão política avassaladora com o tridente formado por Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, nos anos 1980, personificado nas lideranças de Ronald Reagan, Margareth Thatcher e Helmut Kohl.

Sua força política empunhava um ideário econômico agressivo, cuja síntese mais propalada tornou-se conhecida como o “Consenso de Washington”.

O ciclo do neoliberalismo, quase como um ciclo biológico tradicional, durou cerca de vinte e cinco anos. É difícil encontrar hoje em dia algo que não traga sinais dessa herança. Mesmo com seus abalos, ao final dos anos 1990, ele ainda ganhou uma sobrevida por meio de governos da autointitulada “terceira via”. Sob este guarda-chuvas está uma legião composta pelos democratas nos EUA (Bill Clinton), socialdemocratas da Europa (Tony Blair, no Reino Unido; Gerhard Schröder, na Alemanha; Lionel Jospin, na França; Massimo D’Alema, na Itália) e parte da América Latina (como Fernando Henrique Cardoso, no Brasil; Carlos Andrés Perez, na Venezuela; Carlos Menem, na Argentina; e todos os governos da Concertación chilena).

O inferno astral


O neoliberalismo sofreria um profundo abalo e entraria definitivamente em seu inferno astral a partir de 2008, quando se ouviu um dobre de finados não na periferia do sistema, mas na catedral do capitalismo, em Nova York. Era o enterro da Lehman Brothers Holdings Incorporated.

Mas uma das características do neoliberalismo, além da ousadia e do cinismo, é a teimosia. Ele insistia em disputar projetos políticos e em ganhar eleições com seus arautos. Neles residiam as últimas esperanças de dar a volta por cima, recobrar as energias e reinventar formas de acumulação que evitassem que o capitalismo carregasse a pecha de ser um grande prejuízo para a vida da maioria dos mortais.

Para a surpresa dos incautos, o neoliberalismo conseguiu eleger novos garotos-propaganda. Na pátria-mãe, o Reino Unido, David Cameron; no Chile, Sebastián Piñera; na Alemanha, Angela Merkel.

O Reino Unido é o exemplo mais retumbante do fracasso estrutural do neoliberalismo. Sua política econômica tem como eixo a redução de serviços públicos e a tentativa de desmonte de estruturas de Estado, uma retórica persistente, mas pouco efetiva. O inglês mantém um alto grau de prestação de serviços públicos estatais. Conjunturalmente, a inflação está em alta, com as projeções beirando os 5% - pois é, eles não vão cumprir a meta de inflação, que por lá está fixada em 2%. O desemprego não só está em alta, como é o maior dos últimos dois anos.

A Escócia de Adam Smith, em má homenagem ao credo neoliberal, ostenta um grande número de serviços públicos gratuitos à população. Seu Estado de bem-estar social faz inveja ao dos ingleses. Os escoceses já haviam conseguido um parlamento próprio e agora têm ganhado mais adeptos em favor de sua independência. A política de desmonte, do governo Cameron, tem ajudado em muito a aumentar a adesão à proposta de secessão. As receitas da Escócia são suficientes para mostrar que, se alguém pode sair perdendo com a separação, é a Inglaterra.

No País de Gales, a seção local do partido conservador cogita até trocar de nome e reclama de sua associação ao legado de Margareth Thatcher. A má fama do thatcherismo, segundo pesquisas, os prejudica eleitoralmente.

No Chile, Piñera enfrenta as maiores manifestações desde Pinochet. Além dos estudantes nas ruas, grande parte dos moradores das cidades do sul do país, dependentes do gás subsidiado para se proteger do frio, protesta contra o reajuste do produto e o encarecimento do custo de vida.

Na Alemanha, Merkel tem feito pouca coisa que pode ser considerada verdadeiramente neoliberal. Tanto que até seu companheiro de partido, Helmut Kohl, lhe faz críticas sistemáticas. Os socialdemocratas alemães parecem bem mais apegados ao neoliberalismo e dizem que a Alemanha vai pagar caro pelas “vacilações” de Merkel, que deveria ser mais dura em cobrar ajustes rigorosos em toda a zona do Euro.

O conservadorismo e seu contraponto


Mas a hora não é dada a comemorações. O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e o fascismo.

O conservadorismo tem como bandeiras o combate aos imigrantes, o protecionismo, o militarismo e o gasto social seletivo. Quer reduzir a prestação de serviços públicos e trocá-los por cheques, “vouchers” e descontos de imposto de renda, mas não exatamente por razões privatistas. Há um duplo propósito. Torna possível financiar empresas privadas nacionais para prestar serviços públicos essenciais e fecha a porta aos imigrantes, que vivem na ilegalidade e não podem receber esses benefícios focalizados.

O conservadorismo que tem no “Tea Party”, dos EUA, seu movimento mais proeminente, é protecionista, nacionalista, militarista, xenófobo, intolerante Os neoliberais não são a fonte desses cacoetes. Seus vícios originais são outros, embora aceitem compartilhá-los, principalmente o militarismo, se isso justificar vantagens competitivas.

Neoliberais apoiam a imigração como forma de atrair talentos de qualquer parte do mundo e reduzir o custo da mão-de-obra, assim como para manter uma ampla parcela de trabalhadores apartada de direitos sociais. São a favor do direito de mulheres muçulmanas escolherem se querem ou não usar a burka, pois sua proibição desrespeita a liberdade individual. São cautelosos quanto ao militarismo, pois seus gastos são elevados. Henry Kissinger e James Baker escreveram, meses atrás, um artigo condenando a intervenção na guerra da Líbia, com base em um cálculo da relação custo-benefício para os Estados Unidos.

Na crise financeira de 2008, os neoliberais foram, em grande medida, “liquidacionistas”, como o velho Hayek pregava. Disseram que os bancos em dificuldades deveriam ser deixados à sua própria sorte e quebrarem, se preciso fosse.

Se há um contraponto político ao conservadorismo, ele ronda a América do Sul. Está pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, Equador e Peru. Com defeitos, limitações, tibiezas e inúmeros problemas. Na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos de esquerda são de uma espontaneidade sem luxemburguismo (o da Rosa, não o do Vanderley). Dependem de associações civis pouco conectadas à luta política nacional e têm um profundo descrédito pelos partidos, inclusive os de ultraesquerda, afogados em sua própria retórica e empacados em sua falta de projeto.


Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5205

sábado, 17 de setembro de 2011

O CENTRO DE FORTALEZA






Por Joaquim Cartaxo


Também conhecido por centro antigo ou histórico pois a partir dele a cidade se constituiu e se expandiu, o centro tradicional de Fortaleza, a exemplo das outras metrópoles brasileiras, foi tomado pelas atividades comerciais e de serviços que atendem à demanda e aos interesses das camadas populares. Logo, se transformou num centro de consumo popular sem perder o lugar de centro principal, assim considerado porque concentra a maior quantidade de empregos do setor terciário.

Mensura-se essa primazia, ao comparar-se os cinco bairros com maior número de empregos formais desse setor, a partir da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego de 31/12/2010, dentre os quais o Centro ocupa o primeiro lugar com um estoque de 76.424 empregos que representam 18,44% do total de 414.509 empregos formais do setor terciário de Fortaleza. Os outros são Meireles (46.486), Aldeota (26.990), Cocó (22.508) e Joaquim Távora (19.270).

A transformação em centro de consumo popular ocorreu à proporção que atividades socioeconômicas de atendimento às camadas de alta renda o abandonaram e se deslocaram para a Aldeota e o Meireles a partir de 1980, quando se inicia a renovação urbanística desses bairros, caracterizada por mudanças de uso residencial unifamiliar pelo multifamiliar e surgimento de uma nova área de centralidade com características de subcentro que concentra de forma equilibrada e diversificada atividades comerciais e de serviços, antes encontradas apenas no centro tradicional, que atende parte da cidade.

Nesse passo, programas urbanísticos e de preservação do patrimônio do centro de Fortaleza têm que reunir ações e projetos com o objetivo de fortalecê-lo como centro de consumo popular e apresentar como resultados a melhoria do funcionamento e ampliação das atividades socioeconômicos, da segurança, conforto e bem-estar dos trabalhadores e consumidores do centro.


Joaquim Cartaxo é arquiteto e mestre em planejamento urbano e regional.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A estratégia do medo

Por Venício Lima

Os 10 anos dos atentados terroristas de 11 de setembro, nos Estados Unidos, constituem mais uma oportunidade para se refletir em torno do recurso à violência na ação política e sobre a centralidade da mídia no conturbado mundo contemporâneo.

Uma vasta literatura sobre terrorismo floresceu nos últimos anos. Não se trata, evidentemente, de fazer um balanço dela. O que interessa, em particular, é recuperar as lições já aprendidas sobre o terrorismo como forma de comunicação. E essa característica vale para os diferentes tipos de terrorismo, inclusive aquele ao qual, eventualmente, grupos de mídia se aliam de forma explícita ou não.

“Sem comunicação não haveria terrorismo”
Atribui-se a Marshall McLuhan a afirmação acima. De fato, existe consenso de que a divulgação, através da grande mídia, dos atos de terror constitui uma condição básica para sua própria existência. A violência terrorista tem como um de seus principais objetivos a transmissão de uma mensagem. Trata-se, portanto, de uma violência instrumental na medida em que seus executores pretendem que ela seja construtora de significações. A principal delas: o medo generalizado.

Ao disseminar o medo, o terror – na maioria das vezes – tenta identificar o conjunto da população como inimiga e, dessa forma, passa a “legitimar” qualquer tipo de ação violenta indiscriminada. De forma circular, quanto mais severas as medidas de repressão ao terrorismo adotadas pelo Estado, mais se tende a desrespeitar garantias de direitos e liberdades fundamentais e, muitas vezes, mais se legitima a própria ação terrorista.

Mas não é só o medo que o terror comunica. Os atos de terror servem como forma de manutenção da coesão interna, da moral e das motivações dos próprios grupos terroristas. Dirigem-se, dessa forma, também ao “público interno” além de facilitar o trabalho de recrutamento de novos membros.

Por tudo isso, atos de terror se transformaram em ações grandiosas e espetaculares que atraem a cobertura da grande mídia. Há autores, inclusive, que falam na existência de uma simbiose: se o terror precisa da mídia para divulgar sua mensagem de violência e medo, os terroristas proporcionam o espetáculo do qual a mídia comercial se alimenta.

Estratégia do medo
A estratégia do medo, por óbvio, não é um recurso exclusivo da violência terrorista. Ele tem sido utilizado também em nome do jornalismo.
No intrigante artigo sobre o escândalo do tablóide “News of the World” - “O medo que não ousava dizer o nome” – o professor Timothy Garton Ash afirmou:

“a débâcle de Murdoch revela uma doença que vem obstruindo lentamente o coração do Estado britânico nos últimos 30 anos. (...) A causa fundamental dessa doença britânica tem sido o poder exacerbado, implacável e fora de controle da mídia; seu principal sintoma é o medo. (...)
Se a medida final de poder relativo é “quem tem mais medo de quem”, então seria o caso de dizer que Murdoch foi – no sentido estrito, básico – mais poderoso que os últimos três premiês da Grã-Bretanha. Eles tinham mais medo dele do que ele deles”
(cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/inews-of-the-worldi-o-poder-do-medo)

Na Terra de Santa Cruz a constatação da existência de situações semelhantes em diferentes momentos da nossa história recente não chegaria a constituir surpresa.

Conseqüências e lições
A simbiose mencionada entre mídia e terror parece ter se manifestado de forma clara quando, após o 11 de setembro de 2001, os EUA dividiram o mundo entre o “bem” e o “mal” e iniciaram “missões do bem”. A violência da invasão militar de países considerados do “mal” passa, de certa forma, a “legitimar-se” por essa dicotomia mistificadora.

Ademais, a ação de violência do Estado pode, então, tornar-se, ela própria, uma prática terrorista. O Ato Patriótico do governo Bush institucionalizou uma forma de terrorismo admitindo, por exemplo, a tortura e a prisão sem julgamento, além de definir randomicamente alvos simbólicos.

Nesse contexto, aparece a figura do “embedded journalist”. Os jornalistas da grande mídia que quisessem cobrir a ação das tropas americanas na invasão do Iraque em 2003 seriam “incorporados” (embutidos) aos próprios batalhões de combate.

O “embedded journalist”, por óbvio, abdica de qualquer autonomia. Sujeita-se às contingências da própria operação militar e a cobertura “jornalística” passa a ser conduzida de “dentro” pelo comando da tropa. Aqui a mídia se incorpora à própria ação de violência do Estado e, de certa forma, com ela se confunde.

É indispensável que a grande mídia se dê conta de seu delicado papel nas sociedades contemporâneas e abrace de forma inequívoca o compromisso com a não violência e – por extensão – recuse qualquer prática que se valha da estratégia do medo.

Em relação à conduta frente a atos de violência terrorista – seja qual for a sua origem – o fundamental é praticar a não-violência ativa, pautada por princípios civilizatórios. Não há outra forma de evitar a cumplicidade.


Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5190