Farol do Mucuripe, Fortaleza, Ceará, 1940 - Arquivo jornal O Povo |
Os escravos me levantaram em meados do
dezenove sobre este morrote aqui no Serviluz, sobranceiro sobre o mar e o resto
da paisagem da jovem cidade. Construíram-me robustamente neoclássico, minhas
paredes de alvenaria grossas de mais de metro, minha planta em octógono, as
ameias me dando um ar de castelo. Durante décadas a fio fui segura referência
para muito sujeito desnorteado na selva marinha. Tanta nau orientei, tanto
barco salvei do naufrágio iminente, o sorriso de alívio dos comandantes e dos
pobres marujos. Entretanto, há tempos estou cego. Tem para mais de cinqüenta
anos que perdi a luz do meu olho, tiraram-me a tocha de guardião do oceano,
aposentaram-me do meu mister. Hoje sou apenas um prédio sobre uma duna, e como
dói.
Lembro-me dos meus dias de glória.
Elegeram-me símbolo arquitetônico da capital e do estado, minha efígie se
encontra no brasão e na bandeira deste Ceará velho de guerra. Ganhei canção
bonita do Ednardo e um belo quadro do belga Georges Wambach. A admiração chegou
a um ponto tal que, depois de aposentado, transformaram-me em museu e me
tombaram como patrimônio histórico. Claro, fiquei orgulhoso, não é qualquer
edifício que vira monumento, lugar de memória, da noite para o dia. Se antes
era um marco para quem vivia nas ondas, hoje sou, com licença da palavra, bem
imóvel protegido. Chique, não? Que nada, quem tiver coragem de me fazer uma
visita vai encontrar um triste cenário, de dar dó, de sentar na coxia e verter mil
lágrimas de esguicho.
Carrego a má sina do bairro que se me presta
de chão. O abandono, a negligência e o desprezo que devotam à gente que resiste
aqui são também sentidos por mim. Zona de povo pobre, não vai lá que é
perigoso, maconheiro do Titanzinho, rapariga do Farol. A função cultural que
cerimoniosamente me reservaram acabou-se, não sirvo mais para nada. Cercado de
casebres e tendo como parceiro de infortúnio o arranque de um fortim colonial,
estou cheio das mazelas das construções antigas e mal cuidadas. Com as portas
sempre escancaradas, sirvo de abrigo aos amores clandestinos e às vítimas dos
desarranjos intestinais. Minha espinha dorsal, a escada helicoidal em ferro
forjado, comida de ferrugem e sal. Quem deveria zelar por mim só se esquiva.
Hoje de manhã fui acordado por uma
algazarra dos diabos. Gente jovem e ruidosa, cabelos ao vento, idéias nas
nuvens. Sobre andaimes e com sprays nas mãos, cobriram-me de grafites escuros, guirlandas,
barcos, seres imaginários. Sorrindo, dizem que assim prestarão mais atenção em
mim, me resgatarão do esquecimento, me recuperarão. Negrada, grato pela força e
pelo bom mocismo, mas, como prédio, e tombado, careço de outros carinhos, bem
mais adequados e urgentes. Minha natureza é proteger, dar forma a uma função.
Restaurado e posto a serviço de um novo e útil uso, tanto poderia ajudar as
pessoas daqui, colorindo suas vidas cinzentas. Essas tatuagens ficarão como
marca de uma ação bacana ou de um ato inconveniente e ilegal?
Idos os meus pretensos benfeitores, resto na
minha mesma melancólica situação, agora vestindo esta nova e berrante roupa que
briga com a minha austera modinatura. Ah, Terra da Luz, mãe da marmota. A noite
cai, as estrelas surgem no salão do céu, a lua se insinua por entre as nuvens.
Aqui é ruim, mas é bom, perto da praia e com a brisa a favor, só falta melhorar.
Esses passos a esta hora, quem vem lá? Não acredito, são pichadores e já deram
início às suas atividades, subindo por minhas paredes, galgando a minha
torrinha, gravando em mim seus rabiscos em sua agoniada coreografia. Meu corpo
de pedra e tijolo, um palimpsesto de garatujas incompreensíveis e boas
intenções artísticas. E então, amigo, sou patrimônio de todos ou Casa de Mãe
Joana?
Fonte: jornal O POVO, 25 de novembro de 2013 e http://fortalezanobre.blogspot.com.br/