Por Romeu Duarte
Ao Geraldo e aos amigos da Base
Cidade é bicho esquisito. Você pensa que a
está apenas usando quando, na verdade, está estabelecendo uma relação de amor e
ódio com ela. Experimente passar um tempo longe dos seus sortilégios. Na volta,
muitas serão as reclamações quanto às mudanças que fizeram sem lhe consultar,
os muitos prédios que derrubaram, os jardins transformados em desertos, a casa
da antiga namorada convertida num centro comercial. Dirão uns: “Besteira, tu
queria bem que tudo ficasse do jeito que era?”. Claro, a cidade, mormente a
metrópole, é um ser vivo, num constante processo de expansão e transformação.
Doido é quem tenta impedir esse fluxo. Mesmo assim, como ficamos aqueles que
têm o seu umbigo enterrado num lugar de memória?
Sei que é difícil, até impertinente, falar
dessas coisas tendo Fortaleza como referência. Parece-me que a tradição de
nossa urbe é abdicar de toda e qualquer tradição em favor de reluzentes
novidades, comportamento de quem tem sempre uma mercadoria nova nas gôndolas
para oferecer. A sedução pelo novo e por aquilo que é de fora cala toda e
qualquer reverência ao passado e impede a conformação de um modo de vida
próprio, como se estivéssemos condenados a um presente de imitação e a um
futuro destituído de traço civilizatório. Esse é o sentimento que me assalta
quando ando, por exemplo, pela Aldeota, ao ver suas lojas anunciando “on sale”,
“50% off”, ou até mesmo pelo Montese, com seus “kings”, o idioma pátrio indo
conosco pro beleléu...
Ruminava esses assuntos a bordo de um
uisquinho, no bar favorito, enquanto aguardava uns amigos que foram meninos
comigo na Base Aérea de Fortaleza. Como estariam eles agora? Ainda conservavam
a verve e a molecagem como características? Alguns deles não via há décadas,
suas imagens ainda juvenis na minha já desgastada lembrança. E pensar que iniciamos
nosso conhecimento do mundo e aprontamos todas aquelas marmotas numa unidade
castrense e em plena ditadura militar...Para nós, a Base era um brinquedo.
Passamos batidos pelo clima de opressão política porque havia rachas a jogar,
arraias no céu a cortar, corridas de rolimã para competir, quintais a explorar,
essas coisas que fazem a vida valer a pena.
Vão chegando aos magotes, zoadentos e
animados. Uns não mudaram quase nada ou muito pouco; outros, só com o exame de
DNA para reconhecer. Carecas, grisalhos e barrigas salientes, quem diria que
aqueles garotos iriam um dia ficar assim? E toca a lembrar das muitas
presepadas, a adúltera doida pelo rapazote malino, a menina linda na festa de
São João, o sargento nu fugindo da polícia numa lambreta, o incêndio que ateamos
no Aeroclube, a surra que quase levamos de um time de várzea, os torneios de
futebol disputados a tapa, a brincadeira que por pouco não gerou uma operação
de guerra, os que se foram, os que estão indo, os que permanecem. As mulheres,
noivas e namoradas em bocejos mil, que memória dos outros é uma chatice...
Bocado bebido, comido e conversado,
acampamentos levantados, longas e calorosas despedidas, a promessa de em breve
nos revermos, cada um para o seu canto. Na volta para casa, no táxi, indago-me:
“O que faz pessoas tão distintas, de interesses tão diversos, manterem essa
chama tão acesa?”. Ao meu lado, esquecido por alguém, um jornal traz a notícia
da possível desativação da Base Aérea de Fortaleza. Fecho os olhos e fico a
lembrar daqueles espaços, da arquitetura monumental dos edifícios (que depois
descobri ser da autoria de Emílio Hinko, o mesmo do Castelo do Plácido, de
triste sina), do que vivi ali. A ser verdade, o que dela será feito? No
destino, pago a corrida e escuto o motor de um avião, perdido na noite, assim como
eu.
Fonte: jornal O POVO, 11 de novembro de 2013.
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