À Emília, com um beijo
Olhos sonolentos, o costumeiro mau humor
matinal (ampliado), o cabelo castanho em cachos caindo sobre o rostinho cheio,
o suco de laranja aguardando no copo para ser bebido, minha menina, em que
galáxia o teu pensamento? Ontem eras apenas um bebê sobre uma toalha grená
dando gargalhada para o fotógrafo sob um jovem ipê no Parque do Cocó. Hoje,
logo mais, decidirás o teu destino profissional nas longas horas de uma prova
que farás em um colégio que mais parece uma prisão. Quanta responsabilidade
para tanta juventude. Responde com um amuo a minha pergunta. Melhor deixá-la em
paz, concentração agora é tudo. Súbito, espirros mil. Nem provou as torradas
com geléia de morango, a idéia em algum furtivo paralelogramo.
A mãe, desvelada leoa, já cuidou de tudo.
Os documentos, a carteira de identidade, a água mineral, o lanche de frutas e
barras de cereal, tudo envolto em um saco plástico. Que tema terão escolhido
para a tua redação? O berro rouco e ensurdecedor das ruas, a exploração do
pré-sal, a mobilidade social dos 40 milhões de ex-pobres? Neste momento,
absorta, dedilha no violão do pai uma canção da Norah Jones. A voz sai pequena
e afinada, serpenteando entre os acordes. A irmã pequena, viperina, diz que ela
já deveria estar pronta e que o teste que ela vai fazer não é para cantora. É o
bastante para um candente conflito fraterno, logo apartado pelos pais. Num
pinote, vai ao banheiro para as abluções. Ai, a água do chuveiro sobre o ácido
da menina...
Sai do banho esplendorosa, o corpo roliço, alta
e empinada, minha garota, minha boneca, minha gata. Já, já, vai aparecer por
aqui, se é que ainda não deu o ar da graça, um papangu metido de olho grelado.
Ciúme de pai, besteira besta, mas que incomoda, ah, nem queira saber. A blusa
do colégio, o jeans apertado, o tênis vermelho. A tira no cabelo revolto
amarrará seus sonhos? Não, que sonho é coisa que não se deixa amarrar. No
carro, a caminho da luta, vai calada e grave, trocando mensagens com seus
amigos numa silenciosa algazarra virtual. Ah, minha menina, tanto que a vida
ainda te reserva! Seu olhar percorre as ruas vazias da Aldeota domingueira, o
coração, um sólido euclidiano, um lance de dados jamais abolirá o quadrado da
hipotenusa...
A longa fila de jovens almas sob o sol
escaldante, o suado retrato da esperança. “O senhor é aquele que escreve no
jornal? Se ela puxou ao senhor, então está no papo”. No da minha filha ou no da
dele, elogio ou sarcasmo? Nada de provocações, bola pro mato que o jogo é de
campeonato. A torturante volta do ponteiro do relógio: leia bem o enunciado da
questão, a solução está nas entrelinhas, mãe, estou sentindo um frio na
barriga, que nada, menina, é só impressão, vai dar tudo certo, e se não der,
não se preocupe, já fiz vestibular com um olho só, papai, o senhor é o melhor
mentiroso do mundo, o portão abriu, um renascer, uma travessia para outra etapa
da vida, revise tudo no fim, Deus te guie, seja feliz, que a força esteja com
você, passarinho.
Ah, Mallarmée, poeta querido com quem
brinquei lá atrás, tens razão: "os sonhos têm tanta força quanto as ações". Desejo sem gesto não tem futuro. Lá vai ela, graciosa, tão valente e tão criança
ainda, quão severa esta hora, os passos curtos por entre a multidão de
gladiadores, a mãozinha espalmada balançando, o olhar confiante, o sorriso
encabulado, sua face cada vez mais distante, a roupa colorida já quase
imperceptível, agora ganhando a galeria, subindo a escada, a prova é no quarto
andar, o jeito é aguardar, dessa forma é que eles viram gente, que filho é para
o mundo, não é para nós, é isso mesmo, enxuga a lágrima, é sempre assim, aceita
um cafezinho, um cai-duro, não, obrigado, pois é, o senhor escreve bonzinho, só
que torce pelo time errado...
Fonte: jornal O POVO, 4 de novembro de 2013.
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