quinta-feira, 7 de novembro de 2013

DOCES SONHOS ENCARACOLADOS

Por Romeu Duarte




À Emília, com um beijo

Olhos sonolentos, o costumeiro mau humor matinal (ampliado), o cabelo castanho em cachos caindo sobre o rostinho cheio, o suco de laranja aguardando no copo para ser bebido, minha menina, em que galáxia o teu pensamento? Ontem eras apenas um bebê sobre uma toalha grená dando gargalhada para o fotógrafo sob um jovem ipê no Parque do Cocó. Hoje, logo mais, decidirás o teu destino profissional nas longas horas de uma prova que farás em um colégio que mais parece uma prisão. Quanta responsabilidade para tanta juventude. Responde com um amuo a minha pergunta. Melhor deixá-la em paz, concentração agora é tudo. Súbito, espirros mil. Nem provou as torradas com geléia de morango, a idéia em algum furtivo paralelogramo.
A mãe, desvelada leoa, já cuidou de tudo. Os documentos, a carteira de identidade, a água mineral, o lanche de frutas e barras de cereal, tudo envolto em um saco plástico. Que tema terão escolhido para a tua redação? O berro rouco e ensurdecedor das ruas, a exploração do pré-sal, a mobilidade social dos 40 milhões de ex-pobres? Neste momento, absorta, dedilha no violão do pai uma canção da Norah Jones. A voz sai pequena e afinada, serpenteando entre os acordes. A irmã pequena, viperina, diz que ela já deveria estar pronta e que o teste que ela vai fazer não é para cantora. É o bastante para um candente conflito fraterno, logo apartado pelos pais. Num pinote, vai ao banheiro para as abluções. Ai, a água do chuveiro sobre o ácido da menina...
Sai do banho esplendorosa, o corpo roliço, alta e empinada, minha garota, minha boneca, minha gata. Já, já, vai aparecer por aqui, se é que ainda não deu o ar da graça, um papangu metido de olho grelado. Ciúme de pai, besteira besta, mas que incomoda, ah, nem queira saber. A blusa do colégio, o jeans apertado, o tênis vermelho. A tira no cabelo revolto amarrará seus sonhos? Não, que sonho é coisa que não se deixa amarrar. No carro, a caminho da luta, vai calada e grave, trocando mensagens com seus amigos numa silenciosa algazarra virtual. Ah, minha menina, tanto que a vida ainda te reserva! Seu olhar percorre as ruas vazias da Aldeota domingueira, o coração, um sólido euclidiano, um lance de dados jamais abolirá o quadrado da hipotenusa...
A longa fila de jovens almas sob o sol escaldante, o suado retrato da esperança. “O senhor é aquele que escreve no jornal? Se ela puxou ao senhor, então está no papo”. No da minha filha ou no da dele, elogio ou sarcasmo? Nada de provocações, bola pro mato que o jogo é de campeonato. A torturante volta do ponteiro do relógio: leia bem o enunciado da questão, a solução está nas entrelinhas, mãe, estou sentindo um frio na barriga, que nada, menina, é só impressão, vai dar tudo certo, e se não der, não se preocupe, já fiz vestibular com um olho só, papai, o senhor é o melhor mentiroso do mundo, o portão abriu, um renascer, uma travessia para outra etapa da vida, revise tudo no fim, Deus te guie, seja feliz, que a força esteja com você, passarinho.
Ah, Mallarmée, poeta querido com quem brinquei lá atrás, tens razão: "os sonhos têm tanta força quanto as ações". Desejo sem gesto não tem futuro. Lá vai ela, graciosa, tão valente e tão criança ainda, quão severa esta hora, os passos curtos por entre a multidão de gladiadores, a mãozinha espalmada balançando, o olhar confiante, o sorriso encabulado, sua face cada vez mais distante, a roupa colorida já quase imperceptível, agora ganhando a galeria, subindo a escada, a prova é no quarto andar, o jeito é aguardar, dessa forma é que eles viram gente, que filho é para o mundo, não é para nós, é isso mesmo, enxuga a lágrima, é sempre assim, aceita um cafezinho, um cai-duro, não, obrigado, pois é, o senhor escreve bonzinho, só que torce pelo time errado...

Fonte: jornal O POVO, 4 de novembro de 2013.

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