Por Romeu Duarte
Estoril em 1943 sendo usado como Clube de Veraneio por soldados | |
A Jacques Antunes
E eis quando não há nada a fazer, nada mais
a dizer, a tarde caindo como uma sentença de morte, o envelope com fotos de
tempos longínquos cai de uma prateleira qualquer e muda o rumo da vida. Não
pense que isso é mera obra do acaso; são os planos do destino, milimetricamente
determinados, intervindo no presente pela via do passado e mandando lembranças
ao futuro. Que tudo pare, que todo o aperreio cesse, que há algo mais
importante a cuidar. Rostos, expressões, roupas, adereços, o que estaria
dizendo, com tanta ênfase, essa menina de cabelo encaracolado aí? Tantos anos
em cada fotograma, olhos e bocas tão graves, a memória simplesmente não ajuda.
Só sei que deve ter sido algo muito importante naquele momento, eternizado no
instantâneo sépia.
A mãe e o pai brincando com o primogênito roliço,
os olhos claros e acesos. A alva fralda drapejada, o boné maroto, os dedos da
mão esquerda todos enfiados na boca. Agora o menino ensaia os primeiros passos,
o riso desdentado mangando dos perigos a cada pisada. A hesitação entre o
velocípede e o cavalinho de pau, o macacão cáqui. Sim, minha filha, você parece
muito com ele, como não? O piso da casa era em mosaico xadrez, dava para jogar
damas com os gatos e os sapatos. Aqui já era no Cocorote, o cheiro forte do
combustível dos aviões que davam rasante sobre as nossas cabeças. Os pivetes
ajuntados em escadinha, os terninhos e o corte Príncipe Danilo. Não, não
tínhamos vergonha, era assim que a infância, incauta, acontecia.
Uma solenidade no colégio, quem sabe, as
Olimpíadas. As turmas foram todas fotografadas, ai de quem faltasse nesse dia.
Como existir hoje sem esse instante lá atrás? Esses dois aí morreram pouco
tempo depois, esse fugiu de casa, nunca mais foi encontrado. O magro de óculos,
logo se vê, sempre foi safado, vive até hoje aprontando. O da esquerda, de
camisa de gola alta, puxava uma perna, ninguém reparasse, pois ele zangado era
um bicho. O da frente, de pastinha, já quebrou quatro vezes, pobre sem sorte.
Sou o da juba desgrenhada, certamente rindo de uma piada contada pelo varapau
da direita. O irmão que distribuía santinhos e simpatia, mais tarde morto no
desastre do elevador. É isso mesmo, minha filha, para ir para o outro lado,
basta estar vivo.
Reunião de artistas no Estoril, fim da
década de 1970. As canções suspensas no ar salgado, a cerveja quente, os
cachorros entrando e saindo do salão. Fisionomias sérias, certamente manchadas
de ideologia. A moça que ficava bonita quando tinha acessos de ira. Muitos
bigodes e barbas, cabeleiras fartas, muita pele exposta. O Theatro José de
Alencar lotado, velas na escuridão, a grande feira-show que até hoje, massa,
ressoa. Os bares que se sucederam na voragem etílica, as festas de aniversário,
as passeatas embandeiradas, os casamentos desfeitos, taí um cara gente fina, câncer,
não deu outra. Esse time de futebol tanto apanhava quanto davam nele, o herói
dos subúrbios, cada jogo era uma camisa, tinha todas as cores e nenhuma, o
goleiro, coitado, era cego.
Tanta coisa, tantas caras, tantos ambientes
sobre desgastadas panorâmicas. Tanta esperança nos dentes risonhos, tantos
gestos confiantes, tantos beijos e abraços. Tanto mau sentimento escondido
também, ou em germe e depois aflorado. Fotografia é fogo, faz pensar e sentir,
nos situa no tempo, dá sentido à nossa existência, mesmo que não façamos a
menor idéia do que estávamos fazendo ali naquele átimo. Não importa, a luz nos
registrou a carne sobre o filme, é o que há, a prova do crime da vida vivida.
Sensações reveladas, saudades de quem ou do que não existe mais, surpresa de um
momento bom, lembrança de uma quadra ruim. Súbito, a menina, cheia de tanta
imagem: “Que máquina faria esse álbum, pai, se ele fosse feito na contramão do
tempo?”.
Fontes:
jornal O POVO, 18 de novembro de 2013;
foto - http://fortalezanobre.blogspot.com.br/search?q=Estoril
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