segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O NATAL DOS COMUNISTAS

Por Romeu Duarte

Parque Cidade da Criança e igreja do Coração de Jesus em Fortaleza, Ceará. Fonte: internet  



No táxi varando a noite, ele ia calado, refletindo sobre o que lhe acontecera nos últimos dias. Recebera o convite como uma senha, uma convocação secreta, um chamado a que não poderia jamais faltar. Não fora encaminhado pelo correio; alguém teve a paciência de ir atrás do seu endereço, anotá-lo e despachar a mensagem, papel amassado entre a pilha de correspondências. “Pessoal e intransferível, é?”, resmungou a mulher, “por acaso é algum aniversário de quinze anos?”, ralhou, curiosíssima quanto ao conteúdo daquele misterioso bilhete. Ele, envolto em sete capas e mudo desde então, desconversava: “Que nada, reunião de amigos de muito tempo, de toda a vida”. Ela, desconfiada e de pouca história na sua biografia, fumando numa quenga.
 
O recado era muito claro e direto: “Camarada, o mundo passa por transformações, é certo, mas somente na superfície. No miolo, o que há é a velha exploração do homem pelo homem, agora em escala cibernética, e a extração absurda e dramática da mais valia. Reunamo-nos para uma importante análise dessa conjuntura cruel que nos avilta e arrasa. Digamos não ao capital e a tudo o que ele representa! Junte-se a nós, contamos com você!”. De rubra juventude, rosado nos últimos anos, não poderia ficar insensível ao apelo. Ao ler aquelas palavras, todo o seu passado lhe aguilhoara em fero desafio. Não, dessa vez não recearia, a coisa tocara-lhe os brios. Ao descer do carro de aluguel no bar da Praia de Iracema, aceso, já cantava a Internacional.
 
O povo da sua melhor lembrança estava lá. Os que estavam nas passeatas, os que redigiram os manifestos, os intelectuais e os obreiros, os que lutaram contra a polícia, os que foram para a clandestinidade, os que enfrentaram o exílio. Até os mortos e desaparecidos, de alguma forma, estavam lá. Até aquela menina linda e destemida de há quase cinco décadas, agora uma respeitável senhora, se fazia presente, os mesmos olhos inesquecíveis. Cumprimentou uma multidão, aboletou-se em um canto de mesa, pediu uma cuba-libre em honra das velhas amizades e ficou a fitar aquela mais que madura e ainda bela mulher, que lhe retribuía sorrindo os olhares. Ah, o tempo, esse sábio e ingrato senhor, a nos diminuir o prazo e aumentar a matreirice...
 
O bolchevique encanto sofreu rude golpe quando o dono do boteco, de longas barbas brancas e trajado à Papai Noel, dir-se-ia um Karl Marx natalino, pediu para falar: “Companheiros de longa data, é um prazer recebê-los. Tê-los aqui, nesta véspera de Natal, não tem preço. Aliás, por falar nisso, ofereço-lhes a seguinte proposta: vocês terão neste estabelecimento um local reservado, decorado de forma temática, com música de época e bebida e comida a custos mais que camaradas. Esta cidade desmemoriada precisa conhecer e valorizar seus verdadeiros heróis. Quem sabe uma nova revolução não nascerá destas cabeças, agora grisalhas e mais experientes? Unidos, jamais seremos vencidos”. Se sua lábia era boa, a ira ébria do nosso protagonista era também.
 
“Vai te lascar, cabra fuleiragem, qual é a tua, quer fazer da gente e dessa birosca um zoológico de comunistas?”, berrou. “Eis os domesticados, ali os selvagens, naquele canto os que se reproduzem em cativeiro. Avante, vítimas da fome, destruamos quem nos oprime”, disse, carbonário, em mofa navalhante. Foi o bastante para que um fuá vermelho como sangue se armasse e evoluísse. “Meu Deus”, lamentava o proprietário da taberna, “isso é o que dá tentar juntar Jesus Cristo, Milton Friedman e Lênin. Cambada de trogloditas, terão coragem de fazer pelo menos uma autocrítica?”. Já longe dali, nosso guerreiro, corte na boca e amarrotado de guerra, os olhos nos olhos da antiga namorada, só sorrisos sob as luzes e os anjos da Cidade da Criança.

Fonte: jornal O POVO, 30 de dezembro de 2013.




BOLSA FAMÍLIA

Por Joaquim Cartaxo


Estudo do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE) examinou as transferências de receita do Governo Federal oriundas do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e do Programa Bolsa Família (PBF) no Ceará, de 2009 a 2012. O PBF faz repasse direto para as famílias cadastradas no programa com o objetivo de combater a pobreza; o FPM transfere recursos para financiamento de atividades das prefeituras previstas no orçamento municipal.

A análise anotou que mais de 44% da população do estado se beneficiam do PBF; do total das transferências de receita realizadas pelo Governo Federal, o PBF equivaleu a 48,52% do FPM em 2009; percentual que se elevou para 56,43% em 2012. 
Tais dados demonstram que ainda estamos diante do desafio de superar a pobreza, apesar do Ceará haver reduzido a extrema pobreza severamente. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que as pessoas com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00 somavam 22,2% da população do estado em 2001; esse percentual diminuiu para 8,5% em 2012. Houve também diminuição acentuada no índice de pobreza (pessoas com renda familiar abaixo de R$ 140,00), nesse período, segundo o IPECE: o percentual de 48,7% em 2001 foi reduzido para 21,2% em 2012. 

É inegável a contribuição do PBF na redução desses percentuais, a partir do acesso à renda que cria oportunidades de elevação do padrão de bem-estar e redução de vulnerabilidades sociais. Acesso, todavia, vinculado à obrigatoriedade das famílias manterem seus filhos na escola. 

Em suma: o PBF é um programa de desenvolvimento local com base no binômio renda-educação e o objetivo de superar a pobreza a curto e longo prazos. Sublinhe-se que a renda repassada à população mais pobre contribui para o fortalecimento da economia do município, que faz gerar emprego, mais renda, bem como melhorar da condições de vida e trabalho da população em geral.

Joaquim Cartaxo é arquiteto urbanista e secretario de formação política do PT/CE.

Fonte: jornal O POVO, 30 de dezembro de 2013.








segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O OITIZEIRO ASSASSINADO

Por Romeu Duarte



Ai de ti, oitizeiro, que maldade esta que te fizeram. O bicho-homem realmente não presta. Interromperam tua beleza agreste a golpes de facão. Abriram uma cinta de três palmos em teu floema, à meia altura do teu tronco, para tua vida se esvair. Simples assim, como se mata alguém que atrapalha, ação tão comum, aliás, nesta nossa violenta capital. Retirada a tua casca, nunca mais a tua seiva, sumo sumo elaborado por teu caule, irá à tua raiz e aos teus demais órgãos. Sinto dizer que estás ferrado, companheiro, nada mais te resta a não ser servir de lenha a alguma fogueira gigante. E pensar que deste fruto, sombra e sossego a quem te massacrou. Contra o muro, teu desgrenhado aspecto cinzento e seco, mão agônica de mil dedos no cruel desespero final.
Teu nome, Licania tomentosa, tão bonito e quase denunciador da tua sorte. Espécime típico da flora nativa, tua família enfeita as florestas de restinga atlântica deste Nordeste ensolarado. Porte alto, copa frondosa, para-sol mais que eficaz, morada boa de passarinho. No fim do século XIX, era o pé-de-pau escolhido para ornar os bulevares das ousadas remodelações efetuadas nas cidades brasileiras. Que o diga Adolfo Herbster, nosso urbanista-mor, que nos presenteou em 1875, vinte e um anos depois da experiência revolucionária de Haussmann em Paris, com essas vias paisagísticas, aqui definidoras dos limites da então Fortaleza e donas de nomes imponentes: Duque de Caxias, Imperador, Conceição. Ah, as delicadezas da Loura em sua Belle Époque...
Sem passadismo, mas agora o tempo é outro, de procela em procela. Como é aflita a vida das árvores moradoras desta cidade, dominada por hordas de dendroclastas, dentre outras gentes ruins. Todos os dias, no altar do deus mercado, seus acólitos automóveis celebram a supressão de carradas de plantas adultas com uma salva de buzinas. O urbanismo rodoviarista, o credo xiita dos nossos gestores, quer a todo custo mudar o verde em cinza-concreto. Nem os mais antigos exemplares são poupados: teus irmãos mais velhos da Tristão Gonçalves, mata linear que substituiu a antiga faixa árida do primeiro trem, foram sumariamente eliminados pelo metrô. Depois fica esse povo a reclamar do calor, da secura doida, da sombra que mais não há. Povo burro.
O que fizeram contigo teve requintes de perversidade e ingratidão. Quantos anos teu vizinho, dono de residência do lado do sol, não aproveitou a tua proteção, o teu aconchego. Certamente te viu crescer forte e verdejante, teus galhos, agora implorando socorro, foram braços rijos a galgar o céu. Serviste de referência a ele: “Minha casa é a que tem um oitizeiro grande na frente, não tem erro”. Pela manhã, abrigo de andarilhos, À tarde, torre do castelo de meninos imaginosos. À noite, remanso de namorados sedentos. Isso quando ainda havia vida nas ruas, diferente do hoje de pessoas enjauladas. A desculpa esfarrapada de uma praga inexistente foi a saída que o sujeito achou para te por abaixo. O motivo real, uma cisma, um medo: “Árvore, escada de ladrão”.
Adeus, oitizeiro, quando novamente por aqui passar certamente não mais te verei. Nem te foste ainda e já me sinto de ti saudoso. Além de ti, sinto falta de outras árvores plantadas e arrancadas de minha vida, comoventes paisagens de uma memória cada vez mais esgarçada. Não, não queiras desabar sobre o teto do teu algoz, que a tua essência é boa, de ser pacífico engendrado pelas mãos sábias e sutis da Natureza. Transmuta-te, aceita participar do Cosmo de outra forma, como todos nós um dia. Deixa como silente castigo a esse idiota o desconforto causado pelos rigores vespertinos do astro-rei e o remorso pela traição. Em vez de chorar, sorri, teu epitáfio é um verso, elogio raro de Cecília Meireles, a maior: “Sinto-me toda igual às árvores: solitária, perfeita e pura”.    
Fonte: jornal O POVO, 16 de dezembro de 2013.

CONSUMIDOR SOFISTICADO

Por Joaquim Cartaxo


Imagem: internet
O conceito clássico de sociedade capitalista divide-a em duas classes sociais básicas: proprietários e proletários. Com o desenvolvimento do capitalismo surgiu uma nova classe social, a classe média, detentora de poder aquisitivo que garante as necessidades de sobrevivência e alcança padrões de consumo de lazer e cultura. É composta por pessoas que possuem empregos com condições de trabalho confortáveis, estabilidade financeira e interessadas em demonstrar status social a partir do consumo de bens e serviços. Assim, poder de compra define a classe média.

Data Popular, Banco Mundial e Boston Consulting Group (BCG) apontam o tamanho das classes médias (C,D/E) e alta (A) no Brasil. O total das classes média e alta no Brasil somava 90 milhões de pessoas em 2003; esse número subiu para 196 milhões em 2013. Portanto, houve incremento de 63 milhões de consumidores.

Evidencie-se que 86 milhões de pessoas compunham as classes D/E e 67 milhões a classe C em 2003. Esses números foram alterados dez anos depois: a classe C aumentou para 109 milhões e as D/E  decresceram para 48 milhões.  No mesmo período, a classe A cresceu de 23 milhões de pessoas para 44 milhões. Portanto, ocorreu intensa mobilidade das classes D/E para a classe C, a que mais cresceu.

Inicialmente, essa mobilidade social expandiu o consumo no Brasil. Agora, hábitos de compra estão se sofisticando. Produtos populares, simplórios, básicos não satisfazem mais os brasileiros que estão inclinados a pagar mais, desde que enxerguem proveito na troca.

Exemplificam essa mudança: em 2009, o consumo de fogões sofisticados significava 13%; em 2013, esse percentual subiu para 23%. O consumo de fogões básicos diminuiu de 87% para 77% nesse mesmo período. Da mesma forma, o consumo de geladeiras sofisticadas que, em 2009, representava 43% e, em 2013, cresceu para 57%, enquanto o das geladeiras básicas reduziu de 57% para 43%.

Joaquim Cartaxo é arquiteto urbanista e secretário de formação política do PT/CE
 Fonte: jornal O POVO, 16 de dezembro de 2013.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O AMOR NOS TEMPOS QUE CORREM


Por Romeu Duarte


Conheceram-se no Facebook. Muitos amigos comuns, perfis voláteis na teia sem fim. Ambos de meia idade e recém saídos de relacionamentos fracassados. Ela com seus posts de auto-ajuda, cães e gatos fofos e obras do Romero Brito. Ele com seus instantâneos de viagens, pratos de restaurantes caros e carros antigos. Ela gostava do tom brincalhão e despachado dele. Ele, da delicadeza e meiguice dela. Ah, as máscaras que os personagens usam para atuar nesse cibernético teatro. De tanto curtirem-se, adicionaram-se, viraram amigos. Ademais, concluídos seus ciclos, era hora de encontrar gente nova, a vontade louca de sair da casca, de explorar terrenos desconhecidos, a grande oferta do amplo universo virtual, essa selva de feeds e aplicativos.

Após muitas cutucadas e tecladas para lá e para cá, eles entenderam que era hora de se conhecerem melhor. Deixar de lado os disfarces da imitação da vida utilizados no reino da simulação para encarar o vero mundo real. Marcaram de se ver naquele bistrô da Varjota, chique e os olhos da cara. Dirigiram-se ao local combinado, cada um no seu carro, em suas solidões particulares de que queriam ansiosamente se livrar. Em lá chegando, o atencioso mâitre os acolheu numa aconchegante mesa de canto. “Aqui não tem arrastão, não, né?”, perguntou ela, desconfiada. “Nõ, madame”, respondeu o serviçal num autêntico francês do Mucuripe, “se havia, zé finim”. “Ainda bem”, aliviou-se ela, “já pensou se me levam o i-phone? Sinto-me nua sem ele, mulher sem batom”.

O vazio que sempre acontece entre as conversas de pessoas que ainda pouco se conhecem era mais e mais preenchido e ampliado pelo sôfrego recurso às respectivas aporrinholas eletrônicas. Afagadas por dedos ágeis e curiosos, revelavam mensagens, curtidas, KKKs, as jóias da amiga cosmopolita, a carta de renúncia do político cardíaco e odiado, dentre outras fúteis novidades de consumo imediato. Com o tempo, esfriava a comida, esquentava o vinho e aumentava o silêncio. Como dois autômatos, esqueciam de si e das possibilidades que aquele encontro lhes abria, mergulhados na vertigem de uma avalanche de notícias sem futuro. Acordaram do transe com a chegada da conta, envergonhados da própria besteira que ousaram sepultar com um beijo.

No motel elegante foi pior. As tórridas preliminares desencadeadas entre eles ao longo do caminho dentro do carro foram pouco a pouco substituídas, no tugúrio do amor, pela mesma mania solitária, tola masturbação digital. Súbito, viram-se nus lado a lado, com as costas coladas no espaldar da cama, as pernas estendidas no lençol, as mãos nas novas maquininhas de fazer doido numa compulsão de dar pena. As almas e os corpos em outra dimensão, o sexo desmoralizado. Na volta, consideraram-se vítimas de uma terrível síndrome, a de tentar sofregamente dominar o mundo, isolados e de olhos postos numa tela. “Não basta ser”, constatou ele, “tem que estar na foto e on line”. Despediram-se, cada um para a sua banda, acostumados com sua sorte.

Resignados, retornam ao seu (i)limitado paraíso. A um toque, milhões de dados se lhes oferecem. A segurança das senhas, das chaves, dos bloqueios. A navegação noite adentro nos mares ora revoltos ora tranqüilos da rede mundial de computadores. Não é mais preciso enfrentar a cidade lá fora, com seus medos e perigos; por este portal, vai-se a qualquer lugar na rapidez de um átimo. Viajantes do espaço-tempo comprimido, estão em todo e nenhum canto, suas muitas pegadas visíveis nos céleres feixes de elétrons. A experiência da vida vivida trocada pela representação da existência. Com seus inseparáveis tablets, ele e ela nas varandas dos seus apartamentos, interligados por um dedilhar de teclas, distanciados por quilômetros, separados por anos-luz.

Fonte: jornal O POVO, 9 de dezembro de 2013.



segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

CORAÇÃO ALVINEGRO

Por Romeu Duarte



Faltavam apenas 48 horas. Um suplício esta semana, desde a derrota para o Palmeiras. Teve de agüentar a chacota dos colegas de trabalho na firma, os dentes trincados, o palavrão engatilhado na língua. O gerente, como todo tricolor que se preza, mais preocupado com o figadal adversário do que com o próprio time, era o que mais frescava: “Voltar à Série A? Mas, menino, aí é querer demais, nem São Francisco do Canindé resolve essa. Pensa que é igual a coco, que é só furar que sai água?”. De que adiantava dizer que fosse cuidar da sua vida, que o seu Leãozinho iria cumprir mais um ano na Terceirona, que largasse de ser corno? Tudo era distração, bobagem. Melhor manter o foco no objetivo principal. Na tarde do próximo sábado, o que iria ser, céu ou inferno?

À noite, na cama, o travesseiro entre as pernas, o lençol cobrindo o corpo miúdo e magro, os olhos acesos no escuro, o juízo tinindo. Combinação de resultados, mala branca, mala preta, jogo em casa, jogo fora, maior número de vitórias, gols a mais, gols a menos, sua cabeça era uma máquina de calcular vazando óleo. “Não quer mais saber de nada, nem de mim. Parece que perdeu o gosto pelo bem-bom. Te alui, cara...”, rosnava baixinho, sonolentamente ameaçadora, a mulher. Ele, nem aí, sua atenção toda centrada na partida fatal, razão do sono impossível: “Já pensou voltar à elite do futebol brasileiro no ano do centenário do Glorioso? Um bem sucedido campeonato brasileiro, depois a Libertadores, aí aprendo árabe, o Mundial de Clubes vai ser em Marrakesh...”.

Pois é, o homem era doente pelo Ceará. Desde menino, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, ele sempre firme com a onzena de Porangabuçu. Quanto sol, quanta chuva, quanto frio, quanta légua não suportou em honra ao Vozão. Para ele, não havia meio termo: ou o êxtase na conquista suada ou o choro convulsivo na derrota humilhante. “Sou assim mesmo”, dizia a quem quisesse ouvir, “sou estourado, sou preto e branco, cinza é a cor do cão”. Tanto bateu quanto apanhou muito por conta dessa tresloucada paixão. A refrega começara na casa natal mesmo: contraponto aos irmãos leoninos, teve desde cedo que defender no braço a sua opção clubística. As cicatrizes ele as ostentava como troféus de uma guerra sem fim.

Agora só faltavam 24 horas. O suor frio empapava-lhe as mãos e o pescoço. Estuporado, temia não durar até o fecho do prélio, o vexame de bater o catolé antes da hora e perder o resultado final. Mais uma vez aturou a zombaria do gerente, sempre dando um jeito de passar pelo balcão para dar uma piada: “Meu secador Arno já está ligado no três...”. Vontade de abufelar o sujeito, abarcar nele uma mãozada, mandar ele socar o eletrodoméstico no carretel. Não o fazia por recear perder o emprego, tortura de pobre coitado. Ah, mas ele ia ver, ora se ia. Expediente de sexta findo, em vez de ir para casa preferiu dois dedos de prosa com a Dona Branca num boteco do Centro. Além disso, aquela moça ali no canto, tão à vontade, sorriso moreno e brejeiro, lábios de mel...

Acordou destruído ao lado de um container de lixo, cheio até a tampa e encostado no muro do Cemitério São João Batista, no começo da Padre Mororó. Não fora o cutucão com a bota dado em seu espinhaço pelo espadaúdo policial do Ronda, o miserável ainda estaria nos braços de Morfeu. “Pensei que tu tava morto, levanta logo”, ordenou o militar. De cueca, liso e desgrenhado, gosto de moeda na boca, só se recordava do longo boa noite que a Cinderela havia lhe dado. Foi quando lembrou do jogo. “Pelo amor de Deus, que horas são?!”. “Quatro e vinte da tarde, hora de papudinho ir pro berço”, zombou o meganha. “Quatro e vinte?! Ainda dá para pegar o segundo tempo! Bora, Vozão! Deus é Alvinegro! Torcer é preciso, viver não é preciso!”.

Fonte: jornal O POVO, 2 de dezembro de 2013.