Faltavam apenas 48 horas. Um suplício esta
semana, desde a derrota para o Palmeiras. Teve de agüentar a chacota dos
colegas de trabalho na firma, os dentes trincados, o palavrão engatilhado na língua.
O gerente, como todo tricolor que se preza, mais preocupado com o figadal
adversário do que com o próprio time, era o que mais frescava: “Voltar à Série
A? Mas, menino, aí é querer demais, nem São Francisco do Canindé resolve essa.
Pensa que é igual a coco, que é só furar que sai água?”. De que adiantava dizer
que fosse cuidar da sua vida, que o seu Leãozinho iria cumprir mais um ano na
Terceirona, que largasse de ser corno? Tudo era distração, bobagem. Melhor
manter o foco no objetivo principal. Na tarde do próximo sábado, o que iria ser,
céu ou inferno?
À noite, na cama, o travesseiro entre as
pernas, o lençol cobrindo o corpo miúdo e magro, os olhos acesos no escuro, o
juízo tinindo. Combinação de resultados, mala branca, mala preta, jogo em casa,
jogo fora, maior número de vitórias, gols a mais, gols a menos, sua cabeça era
uma máquina de calcular vazando óleo. “Não quer mais saber de nada, nem de mim.
Parece que perdeu o gosto pelo bem-bom. Te alui, cara...”, rosnava baixinho,
sonolentamente ameaçadora, a mulher. Ele, nem aí, sua atenção toda centrada na
partida fatal, razão do sono impossível: “Já pensou voltar à elite do futebol
brasileiro no ano do centenário do Glorioso? Um bem sucedido campeonato
brasileiro, depois a Libertadores, aí aprendo árabe, o Mundial de Clubes vai
ser em Marrakesh...”.
Pois é, o homem era doente pelo Ceará.
Desde menino, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, ele sempre
firme com a onzena de Porangabuçu. Quanto sol, quanta chuva, quanto frio,
quanta légua não suportou em honra ao Vozão. Para ele, não havia meio termo: ou
o êxtase na conquista suada ou o choro convulsivo na derrota humilhante. “Sou
assim mesmo”, dizia a quem quisesse ouvir, “sou estourado, sou preto e branco,
cinza é a cor do cão”. Tanto bateu quanto apanhou muito por conta dessa tresloucada
paixão. A refrega começara na casa natal mesmo: contraponto aos irmãos
leoninos, teve desde cedo que defender no braço a sua opção clubística. As
cicatrizes ele as ostentava como troféus de uma guerra sem fim.
Agora só faltavam 24 horas. O suor frio empapava-lhe
as mãos e o pescoço. Estuporado, temia não durar até o fecho do prélio, o
vexame de bater o catolé antes da hora e perder o resultado final. Mais uma vez
aturou a zombaria do gerente, sempre dando um jeito de passar pelo balcão para
dar uma piada: “Meu secador Arno já está ligado no três...”. Vontade de
abufelar o sujeito, abarcar nele uma mãozada, mandar ele socar o
eletrodoméstico no carretel. Não o fazia por recear perder o emprego, tortura
de pobre coitado. Ah, mas ele ia ver, ora se ia. Expediente de sexta findo, em
vez de ir para casa preferiu dois dedos de prosa com a Dona Branca num boteco
do Centro. Além disso, aquela moça ali no canto, tão à vontade, sorriso moreno
e brejeiro, lábios de mel...
Acordou destruído ao lado de um container de lixo, cheio até a tampa e
encostado no muro do Cemitério São João Batista, no começo da Padre Mororó. Não
fora o cutucão com a bota dado em seu espinhaço pelo espadaúdo policial do
Ronda, o miserável ainda estaria nos braços de Morfeu. “Pensei que tu tava
morto, levanta logo”, ordenou o militar. De cueca, liso e desgrenhado, gosto de
moeda na boca, só se recordava do longo boa noite que a Cinderela havia lhe
dado. Foi quando lembrou do jogo. “Pelo amor de Deus, que horas são?!”. “Quatro
e vinte da tarde, hora de papudinho ir pro berço”, zombou o meganha. “Quatro e
vinte?! Ainda dá para pegar o segundo tempo! Bora, Vozão! Deus é Alvinegro!
Torcer é preciso, viver não é preciso!”.
Fonte: jornal O POVO, 2 de dezembro de 2013.
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