segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

CORAÇÃO ALVINEGRO

Por Romeu Duarte



Faltavam apenas 48 horas. Um suplício esta semana, desde a derrota para o Palmeiras. Teve de agüentar a chacota dos colegas de trabalho na firma, os dentes trincados, o palavrão engatilhado na língua. O gerente, como todo tricolor que se preza, mais preocupado com o figadal adversário do que com o próprio time, era o que mais frescava: “Voltar à Série A? Mas, menino, aí é querer demais, nem São Francisco do Canindé resolve essa. Pensa que é igual a coco, que é só furar que sai água?”. De que adiantava dizer que fosse cuidar da sua vida, que o seu Leãozinho iria cumprir mais um ano na Terceirona, que largasse de ser corno? Tudo era distração, bobagem. Melhor manter o foco no objetivo principal. Na tarde do próximo sábado, o que iria ser, céu ou inferno?

À noite, na cama, o travesseiro entre as pernas, o lençol cobrindo o corpo miúdo e magro, os olhos acesos no escuro, o juízo tinindo. Combinação de resultados, mala branca, mala preta, jogo em casa, jogo fora, maior número de vitórias, gols a mais, gols a menos, sua cabeça era uma máquina de calcular vazando óleo. “Não quer mais saber de nada, nem de mim. Parece que perdeu o gosto pelo bem-bom. Te alui, cara...”, rosnava baixinho, sonolentamente ameaçadora, a mulher. Ele, nem aí, sua atenção toda centrada na partida fatal, razão do sono impossível: “Já pensou voltar à elite do futebol brasileiro no ano do centenário do Glorioso? Um bem sucedido campeonato brasileiro, depois a Libertadores, aí aprendo árabe, o Mundial de Clubes vai ser em Marrakesh...”.

Pois é, o homem era doente pelo Ceará. Desde menino, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, ele sempre firme com a onzena de Porangabuçu. Quanto sol, quanta chuva, quanto frio, quanta légua não suportou em honra ao Vozão. Para ele, não havia meio termo: ou o êxtase na conquista suada ou o choro convulsivo na derrota humilhante. “Sou assim mesmo”, dizia a quem quisesse ouvir, “sou estourado, sou preto e branco, cinza é a cor do cão”. Tanto bateu quanto apanhou muito por conta dessa tresloucada paixão. A refrega começara na casa natal mesmo: contraponto aos irmãos leoninos, teve desde cedo que defender no braço a sua opção clubística. As cicatrizes ele as ostentava como troféus de uma guerra sem fim.

Agora só faltavam 24 horas. O suor frio empapava-lhe as mãos e o pescoço. Estuporado, temia não durar até o fecho do prélio, o vexame de bater o catolé antes da hora e perder o resultado final. Mais uma vez aturou a zombaria do gerente, sempre dando um jeito de passar pelo balcão para dar uma piada: “Meu secador Arno já está ligado no três...”. Vontade de abufelar o sujeito, abarcar nele uma mãozada, mandar ele socar o eletrodoméstico no carretel. Não o fazia por recear perder o emprego, tortura de pobre coitado. Ah, mas ele ia ver, ora se ia. Expediente de sexta findo, em vez de ir para casa preferiu dois dedos de prosa com a Dona Branca num boteco do Centro. Além disso, aquela moça ali no canto, tão à vontade, sorriso moreno e brejeiro, lábios de mel...

Acordou destruído ao lado de um container de lixo, cheio até a tampa e encostado no muro do Cemitério São João Batista, no começo da Padre Mororó. Não fora o cutucão com a bota dado em seu espinhaço pelo espadaúdo policial do Ronda, o miserável ainda estaria nos braços de Morfeu. “Pensei que tu tava morto, levanta logo”, ordenou o militar. De cueca, liso e desgrenhado, gosto de moeda na boca, só se recordava do longo boa noite que a Cinderela havia lhe dado. Foi quando lembrou do jogo. “Pelo amor de Deus, que horas são?!”. “Quatro e vinte da tarde, hora de papudinho ir pro berço”, zombou o meganha. “Quatro e vinte?! Ainda dá para pegar o segundo tempo! Bora, Vozão! Deus é Alvinegro! Torcer é preciso, viver não é preciso!”.

Fonte: jornal O POVO, 2 de dezembro de 2013.

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