Parque Cidade da Criança e igreja do Coração de Jesus em Fortaleza, Ceará. Fonte: internet |
No táxi varando a noite, ele ia calado,
refletindo sobre o que lhe acontecera nos últimos dias. Recebera o convite como
uma senha, uma convocação secreta, um chamado a que não poderia jamais faltar.
Não fora encaminhado pelo correio; alguém teve a paciência de ir atrás do seu
endereço, anotá-lo e despachar a mensagem, papel amassado entre a pilha de
correspondências. “Pessoal e intransferível, é?”, resmungou a mulher, “por
acaso é algum aniversário de quinze anos?”, ralhou, curiosíssima quanto ao
conteúdo daquele misterioso bilhete. Ele, envolto em sete capas e mudo desde
então, desconversava: “Que nada, reunião de amigos de muito tempo, de toda a
vida”. Ela, desconfiada e de pouca história na sua biografia, fumando numa
quenga.
O recado era muito claro e direto:
“Camarada, o mundo passa por transformações, é certo, mas somente na
superfície. No miolo, o que há é a velha exploração do homem pelo homem, agora
em escala cibernética, e a extração absurda e dramática da mais valia. Reunamo-nos
para uma importante análise dessa conjuntura cruel que nos avilta e arrasa.
Digamos não ao capital e a tudo o que ele representa! Junte-se a nós, contamos
com você!”. De rubra juventude, rosado nos últimos anos, não poderia ficar
insensível ao apelo. Ao ler aquelas palavras, todo o seu passado lhe aguilhoara
em fero desafio. Não, dessa vez não recearia, a coisa tocara-lhe os brios. Ao
descer do carro de aluguel no bar da Praia de Iracema, aceso, já cantava a
Internacional.
O povo da sua melhor lembrança estava lá.
Os que estavam nas passeatas, os que redigiram os manifestos, os intelectuais e
os obreiros, os que lutaram contra a polícia, os que foram para a
clandestinidade, os que enfrentaram o exílio. Até os mortos e desaparecidos, de
alguma forma, estavam lá. Até aquela menina linda e destemida de há quase cinco
décadas, agora uma respeitável senhora, se fazia presente, os mesmos olhos
inesquecíveis. Cumprimentou uma multidão, aboletou-se em um canto de mesa,
pediu uma cuba-libre em honra das velhas amizades e ficou a fitar aquela mais
que madura e ainda bela mulher, que lhe retribuía sorrindo os olhares. Ah, o
tempo, esse sábio e ingrato senhor, a nos diminuir o prazo e aumentar a
matreirice...
O bolchevique encanto sofreu rude golpe
quando o dono do boteco, de longas barbas brancas e trajado à Papai Noel,
dir-se-ia um Karl Marx natalino, pediu para falar: “Companheiros de longa data,
é um prazer recebê-los. Tê-los aqui, nesta véspera de Natal, não tem preço. Aliás,
por falar nisso, ofereço-lhes a seguinte proposta: vocês terão neste
estabelecimento um local reservado, decorado de forma temática, com música de
época e bebida e comida a custos mais que camaradas. Esta cidade desmemoriada
precisa conhecer e valorizar seus verdadeiros heróis. Quem sabe uma nova
revolução não nascerá destas cabeças, agora grisalhas e mais experientes?
Unidos, jamais seremos vencidos”. Se sua lábia era boa, a ira ébria do nosso
protagonista era também.
“Vai te lascar, cabra fuleiragem, qual é a
tua, quer fazer da gente e dessa birosca um zoológico de comunistas?”, berrou.
“Eis os domesticados, ali os selvagens, naquele canto os que se reproduzem em
cativeiro. Avante, vítimas da fome, destruamos quem nos oprime”, disse,
carbonário, em mofa navalhante. Foi o bastante para que um fuá vermelho como
sangue se armasse e evoluísse. “Meu Deus”, lamentava o proprietário da taberna,
“isso é o que dá tentar juntar Jesus Cristo, Milton Friedman e Lênin. Cambada
de trogloditas, terão coragem de fazer pelo menos uma autocrítica?”. Já longe
dali, nosso guerreiro, corte na boca e amarrotado de guerra, os olhos nos olhos
da antiga namorada, só sorrisos sob as luzes e os anjos da Cidade da Criança.
Fonte: jornal O POVO, 30 de dezembro de 2013.
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