segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O OITIZEIRO ASSASSINADO

Por Romeu Duarte



Ai de ti, oitizeiro, que maldade esta que te fizeram. O bicho-homem realmente não presta. Interromperam tua beleza agreste a golpes de facão. Abriram uma cinta de três palmos em teu floema, à meia altura do teu tronco, para tua vida se esvair. Simples assim, como se mata alguém que atrapalha, ação tão comum, aliás, nesta nossa violenta capital. Retirada a tua casca, nunca mais a tua seiva, sumo sumo elaborado por teu caule, irá à tua raiz e aos teus demais órgãos. Sinto dizer que estás ferrado, companheiro, nada mais te resta a não ser servir de lenha a alguma fogueira gigante. E pensar que deste fruto, sombra e sossego a quem te massacrou. Contra o muro, teu desgrenhado aspecto cinzento e seco, mão agônica de mil dedos no cruel desespero final.
Teu nome, Licania tomentosa, tão bonito e quase denunciador da tua sorte. Espécime típico da flora nativa, tua família enfeita as florestas de restinga atlântica deste Nordeste ensolarado. Porte alto, copa frondosa, para-sol mais que eficaz, morada boa de passarinho. No fim do século XIX, era o pé-de-pau escolhido para ornar os bulevares das ousadas remodelações efetuadas nas cidades brasileiras. Que o diga Adolfo Herbster, nosso urbanista-mor, que nos presenteou em 1875, vinte e um anos depois da experiência revolucionária de Haussmann em Paris, com essas vias paisagísticas, aqui definidoras dos limites da então Fortaleza e donas de nomes imponentes: Duque de Caxias, Imperador, Conceição. Ah, as delicadezas da Loura em sua Belle Époque...
Sem passadismo, mas agora o tempo é outro, de procela em procela. Como é aflita a vida das árvores moradoras desta cidade, dominada por hordas de dendroclastas, dentre outras gentes ruins. Todos os dias, no altar do deus mercado, seus acólitos automóveis celebram a supressão de carradas de plantas adultas com uma salva de buzinas. O urbanismo rodoviarista, o credo xiita dos nossos gestores, quer a todo custo mudar o verde em cinza-concreto. Nem os mais antigos exemplares são poupados: teus irmãos mais velhos da Tristão Gonçalves, mata linear que substituiu a antiga faixa árida do primeiro trem, foram sumariamente eliminados pelo metrô. Depois fica esse povo a reclamar do calor, da secura doida, da sombra que mais não há. Povo burro.
O que fizeram contigo teve requintes de perversidade e ingratidão. Quantos anos teu vizinho, dono de residência do lado do sol, não aproveitou a tua proteção, o teu aconchego. Certamente te viu crescer forte e verdejante, teus galhos, agora implorando socorro, foram braços rijos a galgar o céu. Serviste de referência a ele: “Minha casa é a que tem um oitizeiro grande na frente, não tem erro”. Pela manhã, abrigo de andarilhos, À tarde, torre do castelo de meninos imaginosos. À noite, remanso de namorados sedentos. Isso quando ainda havia vida nas ruas, diferente do hoje de pessoas enjauladas. A desculpa esfarrapada de uma praga inexistente foi a saída que o sujeito achou para te por abaixo. O motivo real, uma cisma, um medo: “Árvore, escada de ladrão”.
Adeus, oitizeiro, quando novamente por aqui passar certamente não mais te verei. Nem te foste ainda e já me sinto de ti saudoso. Além de ti, sinto falta de outras árvores plantadas e arrancadas de minha vida, comoventes paisagens de uma memória cada vez mais esgarçada. Não, não queiras desabar sobre o teto do teu algoz, que a tua essência é boa, de ser pacífico engendrado pelas mãos sábias e sutis da Natureza. Transmuta-te, aceita participar do Cosmo de outra forma, como todos nós um dia. Deixa como silente castigo a esse idiota o desconforto causado pelos rigores vespertinos do astro-rei e o remorso pela traição. Em vez de chorar, sorri, teu epitáfio é um verso, elogio raro de Cecília Meireles, a maior: “Sinto-me toda igual às árvores: solitária, perfeita e pura”.    
Fonte: jornal O POVO, 16 de dezembro de 2013.

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