Ai de ti, oitizeiro, que maldade esta que
te fizeram. O bicho-homem realmente não presta. Interromperam tua beleza
agreste a golpes de facão. Abriram uma cinta de três palmos em teu floema, à
meia altura do teu tronco, para tua vida se esvair. Simples assim, como se mata
alguém que atrapalha, ação tão comum, aliás, nesta nossa violenta capital.
Retirada a tua casca, nunca mais a tua seiva, sumo sumo elaborado por teu caule,
irá à tua raiz e aos teus demais órgãos. Sinto dizer que estás ferrado,
companheiro, nada mais te resta a não ser servir de lenha a alguma fogueira
gigante. E pensar que deste fruto, sombra e sossego a quem te massacrou. Contra
o muro, teu desgrenhado aspecto cinzento e seco, mão agônica de mil dedos no cruel
desespero final.
Teu nome, Licania tomentosa, tão bonito e quase denunciador da tua sorte.
Espécime típico da flora nativa, tua família enfeita as florestas de restinga
atlântica deste Nordeste ensolarado. Porte alto, copa frondosa, para-sol mais
que eficaz, morada boa de passarinho. No fim do século XIX, era o pé-de-pau
escolhido para ornar os bulevares das ousadas remodelações efetuadas nas
cidades brasileiras. Que o diga Adolfo Herbster, nosso urbanista-mor, que nos
presenteou em 1875, vinte e um anos depois da experiência revolucionária de
Haussmann em Paris, com essas vias paisagísticas, aqui definidoras dos limites
da então Fortaleza e donas de nomes imponentes: Duque de Caxias, Imperador,
Conceição. Ah, as delicadezas da Loura em sua Belle Époque...
Sem passadismo, mas agora o tempo é outro, de
procela em procela. Como é aflita a vida das árvores moradoras desta cidade, dominada
por hordas de dendroclastas, dentre outras gentes ruins. Todos os dias, no
altar do deus mercado, seus acólitos automóveis celebram a supressão de
carradas de plantas adultas com uma salva de buzinas. O urbanismo rodoviarista,
o credo xiita dos nossos gestores, quer a todo custo mudar o verde em
cinza-concreto. Nem os mais antigos exemplares são poupados: teus irmãos mais
velhos da Tristão Gonçalves, mata linear que substituiu a antiga faixa árida do
primeiro trem, foram sumariamente eliminados pelo metrô. Depois fica esse povo
a reclamar do calor, da secura doida, da sombra que mais não há. Povo burro.
O que fizeram contigo teve requintes de
perversidade e ingratidão. Quantos anos teu vizinho, dono de residência do lado
do sol, não aproveitou a tua proteção, o teu aconchego. Certamente te viu
crescer forte e verdejante, teus galhos, agora implorando socorro, foram braços
rijos a galgar o céu. Serviste de referência a ele: “Minha casa é a que tem um
oitizeiro grande na frente, não tem erro”. Pela manhã, abrigo de andarilhos, À
tarde, torre do castelo de meninos imaginosos. À noite, remanso de namorados
sedentos. Isso quando ainda havia vida nas ruas, diferente do hoje de pessoas
enjauladas. A desculpa esfarrapada de uma praga inexistente foi a saída que o
sujeito achou para te por abaixo. O motivo real, uma cisma, um medo: “Árvore,
escada de ladrão”.
Adeus, oitizeiro, quando novamente por aqui
passar certamente não mais te verei. Nem te foste ainda e já me sinto de ti
saudoso. Além de ti, sinto falta de outras árvores plantadas e arrancadas de
minha vida, comoventes paisagens de uma memória cada vez mais esgarçada. Não,
não queiras desabar sobre o teto do teu algoz, que a tua essência é boa, de ser
pacífico engendrado pelas mãos sábias e sutis da Natureza. Transmuta-te, aceita
participar do Cosmo de outra forma, como todos nós um dia. Deixa como silente
castigo a esse idiota o desconforto causado pelos rigores vespertinos do
astro-rei e o remorso pela traição. Em vez de chorar, sorri, teu epitáfio é um
verso, elogio raro de Cecília Meireles, a maior: “Sinto-me toda igual às
árvores: solitária, perfeita e pura”.
Fonte: jornal O POVO, 16 de dezembro de 2013.
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