segunda-feira, 23 de setembro de 2013

PASSARELA DA VIDA

Por Romeu Duarte


Avenida Beira Mar, Fortaleza, Ceará, Brasil


Antes mesmo da primeira luz matinal, eles se põem em marcha, confiantes em mais um dia. Animando a madrugada, eles descem a pé, de carro, de magrela, de qualquer jeito à Beira-mar, seu concorrido santuário. Vêm para cá rezar à sua maneira, numa celebração cuja igreja é o corpo, seja ele atlético ou flácido. Quando o sol enfim dá as caras já os encontra em pleno movimento, o suor em bagas correndo-lhes nas têmporas, no rego das nádegas, nas batatas das pernas. Solitários, duplas, trios, pelotões, andando, trotando, correndo. Bonés, óculos escuros, roupas coloridas, tênis aerodinâmicos, os relógios cronômetros. Mourejando as colinas da líquida esmeralda, um punhado de surfistas, seus fiéis parceiros de tantos amanheceres.
Se esse culto reside em cada arcabouço de carne e osso que vem e que vai, dizem que é na cabeça que o milagre se dá, sensação de leveza apolínea, a dor feliz das juntas moídas. Eu, dionisíaco incorrigível, resto azedo da boêmia de anteontem, sorvo a reparadora mineral com gás enquanto reparo nessa vigorosa procissão. Silente, indago: De que ou de quem correm? De si mesmos? Para onde pensam que vão? Jamais saberão? Se, como diz o Rosa, o real não está na saída ou na chegada, aqui também estaria no meio da travessia, ou seja, tomando manso uma água de coco em frente ao Náutico? De repente, ocorre-me que cá, nesta extensa, ensolarada e demandada pista, é mister ver e ser visto, bater o ponto, dizer “turma boa, estou vivo, estou aqui”.
Aquele que vem ali, lépido e fagueiro em tropel de sete léguas, não foi o que sumiu com a fortuna da família? O que passou anos desaparecido, dado até por morto? O sorriso cínico é o mesmo. Celular colado ao ouvido, já fala em milhões a esta hora da manhã. Se um novo negócio prepara, sua vitrine é o pé-de-borracha importado do ano em que acabou de entrar. Ele não engana ninguém, as pessoas é que se enganam com ele. Passar bem, amigo. Feliz de vê-los por aqui. O senhor e a senhora vão bem? Claro, o ar marinho, além de uma delícia, é um santo remédio, cura até câncer, Desculpem-me, não sabia, falei de corda em casa de enforcado, mas foi com boa intenção. Certo, em sociedade, tudo se sabe ou se acaba sabendo. Forte abraço, até mais ver.
O que estou fazendo por aqui neste horário? Digamos que ver gente bonita se exercitando abre o meu apetite para o café da manhã. A beleza, mesmo inalcançável, é sempre inspiradora. Clube dos cafajestes? Acho que não me fiz entender. Tudo bem, beijos, que a corrida lhe seja leve. Que bom revê-lo, amigo, depois de tantos anos. Foi mesmo? Que pena. Agora é não desanimar, ela nunca gostou mesmo de você, parta para outra, conte comigo. Seresta no Alicate no sábado à noite para recomeçar? Não vai dar, na data vou a uma cerimônia de primeira comunhão no Cantinho do Frango. Sem problema, estou ao seu lado, bola pra frente. Tudo isso acontecendo e o vendedor de lanche, com sua buzina, acordando o último bêbado da orla marítima de Fortaleza.
Pois é, além de não dirigir, não sei nadar, não gosto de correr e bicicleta nem pensar. Quando o tsunami chegar, arrisca ser um estrago monstro. Você sempre com suas piadas, até mais. Não, compadre, perdoe, não tenho cigarro nem dinheiro e crack só o Magno Alves. Ok, para startar, me manda o link, que eu passo o scanner e envio on line, de boa, brother. Meu esporte predileto? Observação de humanos parados ou em trânsito, o que ora pratico neste recorte do mundo, inventando-lhes papéis e trajetórias, registrando-lhes as silhuetas, assumindo ou criando suas falas, percorrendo seus passos, neste misto de teatro e balneário, ambos patéticos, na Beira-mar, entre os tapumes que me escondem, onde nem os sorrisos me respondem.

Romeu Duarte é arquiteto urbanista
Fonte: jornal O POVO - 23 de setembro de 2013

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