Por Romeu Duarte
Porte Velha - Praia de Iracema, Fortaleza, Ceará, Brasil. |
A Tadeu Feitosa
“Há muito queria falar contigo, anciã. Como
o novo dono do pedaço, filho dileto de Netuno, desejo conhecer cada palmo do
meu território e os seus principais moradores. Ainda não estou pronto, é
verdade, mas cresço a cada segundo. Logo, logo, minha espetacular fantasia irá
embasbacar de dia e encandear à noite. Fortaleza, não perdes por esperar! Terei
golfinhos nos meus olhos, tubarões em cada pulmão, baleias em minha barriga.
Cintilarei minhas escamas metálicas às luzes do Sol e da Lua, descomunal
criatura marinha das profundezas abissais que serei. Oh, Praia de Iracema, tu
que deixaste de ser porto e reduto boêmio, experimenta agora esta nova vida que
te dou. Nem o Dragão, de tantas labaredas antes, será mais grandioso que eu”.
“Tens a arrogância dos jovens, que se vêem
o centro do mundo. Conheço bem o teu estado: já tive também meus dias de
glória, quando o livro era algo que iluminava e embevecia. Minha arquitetura,
hoje tão descuidada, já foi exemplo-mor do brutalismo alencarino. Nascida no
século XIX, fui idealizada para ser a maior de minha estirpe no Ceará. Fui
batizada com o nome de um interventor da era Vargas. Pois é, meu peixe, já fui
importante. Hoje, sofro sem água, ar condicionado e internet, essa rede de
intrigas que me amofina. Vazia, escura, poeirenta, à mercê do ácaro fatal, aqui
resto eu, rejeitada por escritores e leitores, até por este Dragão, que me
estende a cauda à força. Mas o que mais me dói é a ingratidão dos que se
criaram aqui dentro e me deram as costas...”.
“Ai de ti, ultrapassada, não vês que não há
mais lugar para os da tua raça neste planeta? Livro? O que manda agora é a
imagem, o espanto das mil telas, a celeridade das notícias, o pulsar da
existência nos megapixels, o homem-holograma. Tu aí, com tua carga inútil de alfarrábios-farofa,
tuas relíquias sem futuro, quem quer saber de ti, quando as crianças não mais aprendem
a redigir seus nomes escrevendo, mas pressionando um teclado? Além dos seres do
mar e das águas dos oceanos, terei também cenários, dioramas, o cinema elevado
à potência do absurdo. Tudo em mim será superlativo e pós-contemporâneo, num
esforço de comunicação com estes novos humanos da Geração Z, meu estimado
público, meus queridos nativos digitais”.
“Tua arrogância explica os problemas que a
tua simples proposta já causou. Aliás, ela tem correspondência em tua forma,
gigante e horrendo animal encalhado na beira da praia, que só serve de moldura à
tua desnecessidade. Tens razão, a imagem é tudo: mal nasces, já estás a apodrecer.
Anseias ser o futuro, só espero que não o do passado. Basta, porém, de arengas
tolas, pois preocupa-me mais o meu porvir, incerto e sem planos. Se ninguém
mais me procura, a culpa não é minha. Sou um simples objeto encravado em uma
cidade hostil à cultura, uma instituição embolorada. A mente e a mão do homem
são o que me salva ou condena. Depósito de livros, repartição, casa
mal-assombrada, meu nome é vazio de idéias e sentires...”.
A noite cai no limite do Centro com o
bairro praiano. As primeiras estrelas dão o ar da graça por entre as copas dos
oitizeiros do bulevar. A Conceição da Prainha benze seus vizinhos brigões e
zoadentos. A líquida esmeralda troca seu manto diurno para uma soirée. O conteúdo do prisma de concreto
e vidro dorme um sono de morte. À beira-mar, o corre-corre de operários e
máquinas, o levanta-e-escora dos tapumes, a obra que não pode parar. As duas
pontes, testemunhas silentes, presenciam a azáfama, as ondas batendo em seus pilares
carcomidos. O Poço da Draga, buraco sem fundo, quem irá resgatar? A mulher
calada, o vento desalinhando o cabelo molhado, o vestido de malha enfiado no
vão das pernas secas, o olhar no breu lá fora, será que ele volta?
Fonte: jornal O POVO - 30 de setembro de 2013.
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