À Solange, com um beijo
E se em vez de menino, tivesse vindo menina,
o sexo bífido no lugar da pinta? O berço não nas Minas Gerais, mas em outro lugar,
brasileiro ou estrangeiro, o sotaque forte, a língua diferente, a fala arrevesada?
Arriscado ainda ser trocado na maternidade, pai e mãe outros, os verdadeiros
nunca mais vistos, desaparecidos na voragem do tempo, outra família, outros
sobrenomes. O mesmo eu? No lugar da infância modesta, a meninice abastada, de
um tudo na geladeira e no armário, a gordura no canto da magreza. O destino
roda o globo e espeta o dedo: Fortaleza? Que nada: Guaporé, Córdoba, Seattle,
Xangai, Dublin, Timbuktu, cidade aqui é mato. Meu corpo, minha existência se
dando em outras terras, outras rotas, nas encruzilhadas da vida que poderia ter
sido.
E se em vez da Base Aérea, fosse Aldeota,
Bairro de Fátima, Parangaba ou Pirambu? Outras amizades, traquinagens
dessemelhantes, trajetória diversa. Talvez jamais tivesse conhecido o Frei
Ambrósio e o Luís do Militão. Nunca os rasantes dos aviões tão perto, o trem
vermelho-e-amarelo rodando e apitando por dentro do bananal, o gol de cabeça
nos minutos finais após o cruzamento do Marcelo Villar. Imagino-me aluno do
Colégio Militar, do 7 de Setembro e do São José e não do Colégio Cearense, a
farda alvi-anil trocada por outra qualquer. Teriam sido iguais a aprendizagem,
a camaradagem, as reprimendas, os fracassos e os êxitos? E se um dia saísse da
sala de aula e desse fim aos estudos, virasse andarilho? Outra travessia, por
terra, mar e ar?
Lembro do rosto de espanto de meu pai, com
uma enciclopédia de termos técnicos nas mãos para me dar de presente, ao me
ouvir dizer de minha desistência da Engenharia. Tivesse eu permanecido no mesmo
lugar, a contragosto, o que teria sucedido? Um profissional frustrado, alguém
eternamente de mal com o mundo e seus moradores ou teria de alguma forma me
encontrado? E se eu tivesse rasgado a prova do vestibular de Arquitetura e
resolvido cursar Relações Internacionais, como queria minha mãe, no caminho de
volta para casa? Se aprovado, onde estaria a uma hora dessas, numa recepção
elegante em Paris, sorvendo o gelado champagne
do sucesso, ou sob os escombros de um hotel destruído por um carro-bomba em
Bangladesh?
Ah, amada Solange, não me vejo sem você. Já
pensou, entretanto, como seria se em vez daquele já antigo beijo apaixonado no
Cine Gazeta (passava “Fantasia”, de Walt Disney, com música de Leopold
Stokowski) eu tivesse metido o pé na carreira e aberto mão dos meus próprios
sentimentos? Jamais teríamos construído o nosso terno ninho. De modo
semelhante, se minha opção fosse por um relacionamento meramente pragmático com
os meandros arquitetônicos e urbanísticos não teria firmado esse pacto de
sangue com a minha profissão, com o bônus e o ônus decorrentes. Talvez sejamos
o resultado de nossas escolhas, dos caminhos que ousamos tomar. Mas, qual o
peso do desígnio nisso tudo, da sina, do fado, na dor e na delícia de cada um?
“De tanto divagar, compadre, o gelo do teu
uísque derreteu...”, disse-me o amigo. “Já se faz tarde, vou pegar o beco, é
hora de bicho pegar menino, cada um com o seu fadário”, despediu-se e, valendo-se
da bela palavra do samba de Nelson Gonçalves, sumiu na noite. As prateleiras do
bar quase vazio, além das garrafas, estavam pejadas de inúmeras propostas,
todas possíveis. A grande quantidade de “se” e de verbos conjugados no
pretérito imperfeito do subjuntivo atulhava o ambiente, sugerindo mil direções
e trilhas alternativas. Estava mergulhado nesse universo enviesado quando escuto
o garçom, absorto em sua faina de servir, cantarolar baixinho: “Não sei se vou,
não sei se fico, se fico aqui, se fico lá, se estou lá, tenho que vir, se estou
aqui, tenho que voltar...”.
Fonte: jornal O POVO, 21 de setembro de 2013.
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