A Sérgio Pinheiro
O dia para ele começa sempre cedo e tem
cheiro de café forte com tapioca quentinha. Banho tomado, cabelo estilo Jovem
Guarda, nu da cintura para cima e com a camisa no ombro, já procura ansioso o
violão, companheiro fiel de tantas jornadas. A natureza é sua musa inspiradora:
a cantiga dos pássaros, o farfalhar das copas das árvores, a luz solar
invadindo o quarto, alguma chuva (quando há), mais tarde a lua e seus
mistérios. Os bichos também lhe dizem respeito: o vira-lata com o focinho entre
as patas, o gato ardiloso e altivo, a formiguinha em sua faina vertical na
parede. No quintal, seu frutífero reino, sob o amigo sapotizeiro, inaugura mais
uma folhinha do calendário com umas boas lapadas matinais e a bordo de um sincopado
samba do Noel.
O jornal sobre a mesinha de madeira não
traz as novas que ele quer ler. Em vez dos atos de vandalismo, do troca-troca
de partidos pelos políticos, das espionagens e guerras pela Terra ele gostaria
de saber quando é que vai brotar o primeiro maturi do cajueiro da rua, se a
balconista da farmácia defronte vai lhe retribuir o olhar pidão, por onde anda o
galo-de-campina que se lhe escapuliu da gaiola. Nem é moço nem é velho e o
Jacarecanga é seu planeta. Pastor do tempo e da paisagem, trabalhar não é seu
forte. Seu natural é curtir o doce passar das horas, a divertida adivinhação
dos ruídos lá fora, o aceno do sol em sua viagem de luz e sombra pelo céu,
ofício de esteta do far niente.
Depois da merenda das dez, mais lapadas e um bolero do Nelson para rebater.
Os trocados que a mana lhe deixara sob o
açucareiro garantiam-lhe com folga a pagodeira no bar da esquina. Pobrezinha,
funcionária pública graduada, tanto trabalho e responsabilidade que nunca
arrumou marido. Melhor assim, de outra forma não seria ele o seu bem cuidado
bibelô. No balcão da bodega, em meio às cangibrinas, os bordões do seu violão alternavam-se
às novidades, ou melhor, às maledicências: o que levou chifre e perdoou a
mulher, a que envenenou a prole, o menino estudioso que acabou na pedra. “Nunca
dei um dia de serviço a ninguém, minha ocupação é com o girar do mundo, esse
brinquedo”. O almoço de panelada com arroz e pirão forrara-lhe o bucho e ora
lhe anunciava a sesta, mansa como uma canção de amor do Chico.
A tarde caindo pelas tabelas presenciou o
seu acordar. Gênio barrigudo e incompreendido, merendava uma tora de bolo com
guaraná lembrando-se dos carinhos e conselhos da mãe, já há muito ida. As
recordações do pai, entretanto, não eram boas, visto tratar-se de figura do
mesmo naipe seu e, como se sabe, dois galos no galinheiro é confusão na certa.
“Quem sai aos seus não degenera”, ria-se de si para consigo, engasgando-se com
as migalhas do confeito. Mais negócio seria voltar ao botequim para
abastecer-se das notícias vespertinas e tomar etílicas providências. O segundo
tempo foi melhor que o primeiro: um coleguinha trouxera um pato à cabidela,
devorado pelos presentes entre goladas da moça branca e um choro do
Pixinguinha.
Noitinha, na rede do alpendre, já se
preparando para a prorrogação e a disputa por pênaltis, ele agenda as tarefas
de amanhã: fazer a fezinha no bicheiro, assistir ao jogo do Ceará, dar um pulo
na farmácia para espiar a tal balconista, ensaiar duas músicas novas do Rei
Roberto, arrumar algum com a irmã para as necessidades, fazer a ronda do
boteco, essas coisas fundamentais do cotidiano. As primeiras estrelas
despertavam-lhe uma curiosidade filosófica: “serei eu uma eterna criança a
brincar de viver neste mundão de meu Deus?”. Tanta vontade de saber, tanta
pergunta sem resposta. O violão obediente ressoa aos seus arpejos, modinha
singela e boa de cantar: “Quem não trabalha não fica doido, só quem trabalha é
que fica doido...”.
Fonte: jornal O POVO, 14 de outubro 2013.
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