Poeta Airton Monte
Diga lá, amigo, tudo bem? Ou melhor, do
jeito que nos cumprimentávamos aqui no planeta Terra, o que é que há, canalha?
Como estão as coisas aí por cima, ou por baixo, ou em algum lugar, ou em lugar
nenhum? Por aqui, vai se vivendo. Teu Fortaleza, parece maldição, continua na
Série C no ano que vem. Meu Ceará faz o possível para entrar no G4 da Série B,
ameaçando ter superado a síndrome da cancela. Nosso Botafogo está bem na foto,
apesar de ter levado dia desses uma traulitada do Flamengo. A seleção é só
esperança, nessa Copa do Mundo de tanta safadeza e confusão. Trabalhando mais
do que posso e ganhando menos do que preciso, defendo no batente a cervejinha
das crianças. E ainda dizem por aí que eu nunca dei um dia de serviço a ninguém...
O motivo deste e-mail é festivo: completo
hoje um ano como cronista d’O Povo, ocupando às segundas-feiras o lugar que foi
teu. Lugar, aliás, rotativamente ocupado, pois além de mim há outros nos demais
dias, tudo gente de fina estampa. A cada crônica que cometo, como dirias, tua
esbelta figura me toma o pensamento: “como é que o cara conseguia escrever textos
cheios de graça e verve, como os muitos que nos deixou, todos os dias?”. Mesmo
hebdomadário, o serviço para mim não é fácil. Escolher os temas e as histórias
(verdadeiras ou não), delinear os personagens (a maioria sem nome), acertar o
tom (como o tanto de coca na dose de rum), pingar o ponto final são tarefas
árduas que as mãos cumprem sobre o teclado, que não é o da tua sambada Underwood...
O ofício da escrita, poeta, abriu-me
perspectivas para outras possibilidades de ver e viver o mundo. A manhã
amarrotada, o ser comum ou esquisito ao lado, o cachorro vadio, o bar lotado,
de tudo se faz canção. Rever memórias, decifrar o presente, adivinhar o futuro,
tecer o fio tênue ou grosso da narrativa, tentar prender a atenção de quem lê,
dizer algo que mude alguma coisa do lado de lá, tem sido este o meu dever de
casa às quintas-feiras à tarde, na solidão do meu escritório. Cumprir
religiosamente o prazo para o envio da peça e aguardar o barulho do jornal
batendo no chão da varanda de minha casa no começo da semana são prazeres que
não têm preço. Melhor só os comentários dos leitores: “não entendo nada,
palavrório difícil, mas às segundas sou seu fiel”.
Como disse George-Louis Leclerc, o Conde de
Buffon, o estilo é o próprio homem. Construir a embocadura, o timbre, a fala é
algo que leva tempo, é trabalho que se faz em silêncio e a partir de dentro.
Como soar autêntico, genuíno, usando-se vocábulos, dados volúveis, para
expressar o eu? O que faço é literatura
ou não devo me preocupar com isso? Aliás, poderá alimentar qualquer grande
expectativa aquele que pratica um gênero literário utilitário e
pré-determinado, que tem seu abrigo, como antes o peixe, nas páginas do jornal?
A esta altura, já deverás estar aporrinhado, com um cotoco preparado para mim, o
bigode ralo, os óculos de aro, a cerveja sem álcool, o cigarrinho furtivo, a
vida infelizmente curta como a da crônica, saudade, poeta, saudade...
Verdade, amigo, Fortaleza ficou mais
triste, chata e burra desde que partiste. Tanto pela falta da tua gaitada
desdentada e míope quanto pelo grande pânico da vida aqui, cada vez mais amarga,
perigosa e sem solução. Se o teu sobradinho azul na Praia de Iracema permanece
no imaginário, o mulherio continua imbatível, que o diga aquela moça com a flor
na boca. Termino com uma reclamação: não, Pessoa, escrever não é esquecer; se
assim fosse, o que seriam estas mal-traçadas de letras invisíveis postas sobre
um papel de vento? Como olvidar quem nos abriu, com um sorriso maroto, todo um
universo de pensares e sentires? Tuas cinzas sobre as ondas, teu canto final.
Subitamente benficano e gentilandino, no Clube do Bode, ergo um brinde de
lágrimas à tua memória.
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