Arreamento da bandeira de São Francisco marcando o encerramento das atividades dos festejos do santo da paz e da ecologia |
A Caio Napoleão
Há muitas luas e sóis, num outubro
abrasador como este, cheguei esbaforido do Colégio Cearense declarando como
feriado nacional o período de meio-dia até a meia-noite daquela sexta-feira. Já
me livrando da farda e dos livros e imaginando a farra de estar perdido no
espaço do túnel do tempo, ouvi a voz de mamãe no corredor: “Para adiantar o
serviço, vá logo se assear. Quando terminar, vista a veste que está em cima da
sua cama”. Pensando ter ganho a tão ansiada calça Topeka modelo Saint-Tropez,
qual não foi a minha decepção ao divisar sobre o leito uma roupa tosca, comprida
e marrom, na verdade um hábito franciscano. “Mãe, que diabo é isso?”. Minha
genitora, mulher severa, retrucou: “Respeite São Francisco, cabra safado, que
nós vamos a Canindé!”.
E agora? Por motivo da cura de uma moléstia
que eu, menino destituído de anti-corpos, contraíra, mamãe havia feito uma
promessa ao poverello de Assis a ser
paga por mim na Basílica da Cidade da Fé. “Arre ema, mamãe, logo hoje que eu
tenho tanto dever pra fazer...”, negociei. “É muito bonito pra tua cara, né,
sem-vergonha? Quando estava coberto de ferida, nem se mexia no fundo da rede.
Agora que está aí, todo lampeiro, nem se lembra de agradecer a quem lhe curou,
né, ingrato?”. “Mas é injusto, a promessa é da senhora...”, argumentei, em vão.
“Quero nem saber, marche pro banheiro e avie. Seu Tio Eduardo vai passar aqui
já, já. Se você não estiver pronto em cinco minutos,,,”. Tomei o banho mais
revoltado do mundo, minha raiva mordendo o sabonete.
Asseio tomado, traje vestido, sandálias
calçadas, lá fui eu, São Francisco dos pobres, com minha mãe e meu tio, cumprir
meu mais que aborrecido calvário. Na saída, a fina zombaria dos meninos
vizinhos: “Vai, feridento!”, “Reza uma Ave-Maria por nós, leproso!”, “Fica por
lá mesmo, Zé-curuba!” e outras jóias da molecagem da Base Aérea de então.
“Quando chegar lá, faça uma oração para cair a língua desse magote de
fidumaégua...”, recomendou meu tio, ao volante de sua Rural Willys 1958
verde-e-branco. Rodando pela BR-020, o carro sem ar condicionado, o vento
quente e seco na cara, os romeiros caminhando mansos pela beira da estrada.
“Devia dar graças a Deus por ir de carro...”, disse mamãe, seus olhos verdes
mirando a paisagem cinza de Caridade.
Canindé era uma nuvem de poeira e calor, um
formigueiro humano da cor do chão barrento, a multidão de devotos se
acotovelando nas procissões, a mulher com uma pedra na cabeça, o menino sem
olhos, o penitente entoando um bendito, os ex-votos na Matriz, a catinga de
urina, suor e excremento no ar, vamos cantando, irmãos, cheio de amor, cheio de
amor, eu sem entender direito aquilo, a cabeça rodando, o planeta girando, as
chagas trazes do Salvador, o povo se espremendo em cânticos, Senhor fazei-me um
instrumento de vossa paz, “Mamãe, tô com sede, quero um Blimp-Limão”, “Tu vai
levar é uma mãozada nos beiços, segura no andor, peste, e reza”, onde houver
ódio que eu leve o amor, “Ai, o de baixo é meu, dona”...
Tudo isso me veio à mente agora, ao deparar
com toda essa gente a pé, na Bezerra de Menezes, a caminho da Terra de
Francisco no Ceará. Vão contritos, expiando culpas e pecados nas muitas bolhas
dos doloridos pés. O calor inclemente não lhes diminui a coragem, feita de
crença inabalável. Quem sou eu para julgar o sacrifício que se lhes impõem? Seus
passos são contas de um rosário debulhado em penoso silêncio. Na volta de minha
viagem, tarde da noite, lembro que vim debaixo de carão e beliscão por ser pivete
malcriado e herege, candidato a interno do Santo Antônio do Buraco de Maracanaú
para criar marra. Com o doce-amargo dessas recordações, eu, agnóstico, desejo
boa sorte a esses peregrinos, em sua busca sofrida de remissão e felicidade.
Fonte: jornal O POVO, 7 de outubro de 2013.
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