Croquis da Catedral de Brasília. Por Oscar Neimeyer |
Por Romeu Duarte
A Nearco
Araújo
Vai, menina, solta
a linha de grafite pelo campo do papel manteiga em branco. Quem risca não
rabisca, corre o risco e se arrisca nessa aventura de dar forma ao pensamento.
Se a natureza fosse confortável, o homem não teria inventado a arquitetura,
disse bem o bardo irlandês. Com esse lema na cabeça, não tenha medo: edifique e
derrube paredes, erga pilares, estenda vigas, deite lajes, pavimente pisos,
lance telhados, construa a moldura da vida humana. Este ofício que te ensino,
novidade em teu viver, é tão velho quanto o desejo do homem de na Terra se
estabelecer. Na Florença renascentista, um mestre do desenho, com a arte de
construir, levantou uma cúpula oca sobre Maria em flor. O mesmo fazemos nós aqui
agora, mesmo sendo humilde o nosso dever.
Borda, menina,
com teu traço cru na alva folha nua, esta visão do real, tão vera e tão tua.
Desenhar é uma forma de alguém possuir as coisas do mundo, mesmo essa pessoa sendo,
como tu, pobre de marré deci. Tens, entretanto, essa magia inata que une olho,
cérebro e mão para desvendar o visível e revelar o invisível que só tu vês. Aproveita
e refina esse dom para conceber abrigos, honrada missão que escolheste. Esse
teu mister, belo e necessário, além de te exigir gostar das gentes, vai demandar
de ti razão, sensibilidade e atenção perenes, a paixão pelos edifícios, o
perder-se pelas cidades, esses enigmas de milhões de faces. Não te esqueces:
Deus está nos detalhes, no gesto mais singelo. A parte diz do todo como o todo
faz a parte, em toda parte.
Apaga sem
receio, menina, com a borracha do perdão, os teus muitos erros, os que ora
cometes e os tantos que ainda cometerás. Exatamente isso: o projeto é um
palimpsesto, um ir e vir frenético de decisões, em que a linguagem verbal é trocada
por mil esboços e croquis. Quem não o compreende, ao vê-lo feito, pensa que a
idéia sempre esteve lá, jazendo fácil na fina espessura do suporte, à mercê de
quem o quiser resgatar. Entretanto, é o arquiteto, com seu gênio, quem o traz à
tona, num parto complexo e gratificante. Eternamente grávido, o herdeiro de
Palladio não teme o experimento: com a matéria bruta do concreto, do aço e do
tijolo constrói o sublime espaço de morar, o oco, o útero, o lugar. De mais a
mais, sem menos nem mais, faz e refaz todo dia o seu sonho chão.
Desculpa,
menina, meu método de ensino e trabalho ultrapassado. Sem o auxílio dos
algoritmos, computadores e ferramentas espetaculares, opero ainda como nas
velhas oficinas do passado, nas quais, ao final dos longos e penosos expedientes,
os rostos, as mãos e os braços dos artífices se mostravam marcados a carvão.
Claro, não precisas seguir a minha maneira; logo terás a tua, feita à tua
feição e gosto. Não rias, contudo, do esquadro de ângulo, do escalímetro, do
gabarito de círculos, da régua paralela, da prancheta: são meus velhos
companheiros de labuta, muito me ajudaram e ajudam, com eles fiz tudo o que me
foi possível fazer. Dois riscos sobre esta prancha são ainda uma parede de
tijolos, acionam indústrias, criam empregos, geram felicidade.
Sabe, menina, este
nosso encontro lembrou-me de um que tive há muito tempo com um querido
professor numa aula de desenho. “Não consigo desenhar o paralelepípedo”,
falei-lhe, aperreado frente à minha impotência em relação à tarefa imposta.
“Não consegues representar a pedra, aluno, porque não a conheces”, disse-me
ele, com forte sotaque amazônico. “Para desenhá-la, precisas penetrá-la,
conhecê-la por dentro, entender a sua constituição e finalidade”. Passei a
refletir sobre a sutil advertência, que mais tarde se transformou numa lição de
sabedoria. Aprender, sempre. Conselho? Como disse Frank Lloyd Wright,
“dedicação, trabalho duro e uma incessante devoção às coisas que tu queres que
aconteça”. Sim, são lágrimas de alegria. Seja feliz.
Fonte: jornal O POVO, 10 de fevereiro de 2014.
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