Bomba atinge cabeça de cinegrafista |
Por Romeu Duarte
Ah, Candelária,
tu, de tantas tragédias, reparaste como as pombas da tua praça alçaram vôo na
hora do estouro? Um foguete na cabeça, uma câmera nas mãos, o miserável não
teve a mínima chance. Os que escondem a face atrás de uma máscara de pano se
escafederam tão ligeiro quanto se ajuntaram para manifestar seu ódio. Algo deu
errado, não era esse o objetivo, foram longe demais? O certo é que agora há
alguém gravemente ferido, jogado no chão, o sangue espesso no mosaico imundo.
Perna, para que te quero, sujou, nessa hora o rabo é um relho. Os remanescentes
poucos, os rostos crispados, apiedam-se do pobre diabo prostrado. “Parece o
menino do Calabouço”, disse um senhor de idade, “Naquele tempo em que os
revoltados mostravam a cara”.
A sirene da
ambulância aguça a memória. Quando a coisa começou na fria Paulicéia, no ano
passado, mesmo intolerante e violento, o movimento angariava simpatias. Como
não protestar contra o aumento da passagem de ônibus, os serviços públicos
ineficientes, a cidade inacessível, a truculência da polícia? O poeta dos
resmungos defendia a ira do povo desorganizado nas ruas enquanto o cantor do
abraçaço amarrava a camisa no semblante, os olhos raivosos à mostra, solidário
com tudo aquilo. Gentis amigos de sempiternas doces maneiras defendiam no
grito, no peito e na raça as ações dos ativistas até o deletar no Facebook. Sem
patrulha, mas como estarão se sentindo agora? Rápidos no pólo oposto, chamando
de terrorista quem antes era herói?
Para muita
gente, vivíamos (vivemos) no negror da mais dura e cruel das ditaduras. A
parada brasileira está tão ruim assim ou nos tornamos mais exigentes? Segue
urgente para o hospital o cinegrafista ensangüentado, seu corpo estendido numa
maca encardida, a vida por um fio. Vozes alteradas, culpas atiradas de parte a
parte, o conflito não terminará aqui. Doravante, como serão vistas as
manifestações? Atos legítimos de cidadãos contrariados em seus direitos ou
safadezas comandadas por arruaceiros consumistas a soldo de interesses escusos?
A justa reivindicação, então, poderá ser enquadrada como mera ação criminosa? Há
quem deseje loucamente uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade? Muitas
perguntas, nenhuma resposta, arre.
Quem cala sobre o teu corpo consente na tua morte. As pombas, assustadas, ainda não voltaram, não querem mais saber do
chão. Quantas mãos dispararam o rojão assassino? Somente as dos garotos tatibitates,
os tais do não sei, não vi, só estava passando, só fiz entregar, não era bem
isso, pois é, pena, sinto muito? Talhada
a ferro e fogo nas profundezas do corte. Chega a nota triste do passamento
do ferido, o caixão coberto com a bandeira do Flamengo, mesmo time da viúva em
lágrimas, comoção nacional. Sutil ironia: os que vociferavam por democracia,
clareza e transparência, embora mascarados, atingiram mortalmente justo quem
transmitia a notícia para todo o país. Quem
cala morre contigo mais morto que estás agora. O horror, o horror.
Esquecida, junto
ao poste no passeio, uma balaclava negra. Imposição do fero verão carioca neste
Rio de Janeiro que continua lindo ou evidência de um fundo arrependimento? Na lembrança,
a mancha de sangue do falecido no piso que lhe serviu de sudário. Que dia é hoje?
Relógio no chão da praça, batendo,
avisando a hora que a raiva traçou no tempo. Uma cruz negra, imensa, depositada
sobre a areia da praia em honra ao que se foi, que poderia dizer, como o bardo
desaparecido: Copacabana, esta semana o mar sou eu. O sol dardeja seus últimos
raios nesta cidade de São Sebastião, mais flechado que nunca. O crepúsculo
insinua: no incêndio repetido, o brilho
do teu cabelo. Chega de metáfora: Sininho, acabou-se o pó de pirlimpimpim, the game is over.
Fonte: jornal O POVO, 17 de fevereiro de 2014. Foto - agência O GLOBO
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