quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O desafio de continuar experimental



Fabio Cypriano

As artes plásticas brasileiras passam por um de seus períodos mais férteis e de maior visibilidade. Até o curador suíço Hans Ulrich Obrist – considerado a personalidade mais importante das artes no mundo, segundo a revista inglesa Artreview – anunciou, no ano passado, que vai estudar a produção nacional nos próximos dois anos, junto com um time de outros três curadores, entre eles o brasileiro Paulo Herkenhoff.

Eles vão organizar uma mostra, em 2012, que deve começar sua itinerância em São Paulo, paralelamente à 30ª Bienal de São Paulo, e depois seguir para prestigiadas instituições estrangeiras, como a Galeria Serpentine, de Londres, da qual Obrist é diretor, e o Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França, entre outros.

Esse tipo de exposição, que Obrist e seu time já tinham realizado sobre os Estados Unidos, China e Índia, não é apenas um sinal da importância crescente que o Brasil vem conquistando no exterior do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista artístico. Desde os anos 1960, a produção nacional deslocou-se de forma original dos movimentos modernistas europeus e norte-americanos para um tipo de arte que demanda um papel muito mais ativo do espectador em relação ao trabalho artístico.

O corpo na arte

Uma das grandes marcas do chamado processo civilizatório – tal como abordado por Norbert Elias, em seu clássico estudo O Processo Civilizador – é a domesticação e anestesiação dos sentidos, com o privilégio da visão e da razão sobre toda a complexidade da vida, o que é uma das principais características da cultura ocidental. Deslocando-se desse eixo, ao perceber que o corpo na cultura brasileira sempre assumiu um papel distinto, como, por exemplo, no Carnaval, artistas brasileiros buscaram estabelecer uma nova forma de relação com a arte.

Esse movimento nas artes plásticas – cujos grandes ícones são Hélio Oiticica e Lygia Clark – foi na verdade um pequeno recorte dentro de um espectro muito mais amplo, que tinha nas telas o engajamento do cinema novo, capitaneado por Glauber Rocha; nos palcos, o experimentalismo de José Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina; e, na música, a complexidade do tropicalismo, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre tantos outros.

Todos esses movimentos trilhavam os mesmos caminhos: por um lado, abordavam o que melhor traduzia a cultura brasileira, usando a antropofagia de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral como uma de suas grandes referências; por outro, visavam estimular, por meio da arte, uma participação ativa do espectador no contexto político e social.

Esse momento, de intensa originalidade no cenário internacional, sem dúvida foi rompido pelo golpe militar de 1964 e seu endurecimento, com o AI-5, em 1969, levando muitos artistas ao autoexílio, como Oiticica, que foi viver em Nova York, e Clark, em Paris.

Com o movimento de abertura política dos anos 1980 e o fim da diáspora dos artistas e intelectuais pela Europa e pelos Estados Unidos, o Brasil entrou em uma nova fase, que de certa forma, e por motivos óbvios, ignora o social, para glorificar o hedonismo. “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, cantava Ney Matogrosso no álbum Feitiço, de 1978, que vai nortear o comportamento na década seguinte.

Essa busca pelo prazer, contudo, não representa uma ruptura com a arte dos anos 1960, como muitos costumam apontar. Afinal, se a arte daquele momento pedia que todos os sentidos estivessem envolvidos, a busca pela liberdade não é uma contradição com essa intenção. Essa liberdade significou, para a chamada “Geração 80”, que até mesmo pintar era possível novamente, não no sentido tradicional, do cavalete e com a moldura tradicional, mas utilizando novos formatos e suportes, como tão bem explorou Leda Catunda, em toalhas e outros objetos, ou Iran do Espírito Santo, na própria parede.

Contudo, esse grupo, por razões mercadológicas, foi incluído no rótulo “a volta da pintura”, como se a marca fundamental desse período fosse esse gênero. Ora, desde o fim dos anos 1950, a pintura deixou de ser uma questão, já que a produção artística ganhou um caráter híbrido, ou seja, podia ser feita numa tela ou num fio de lã pendurado no teto.

No entanto, jornalistas ingênuos e mal informados, periodicamente, costumam ressuscitar a pintura, como se esse suporte de fato necessitasse de um espaço de reflexão próprio, quando isso significa contrariar todo o espírito da chamada produção pós-moderna, ou seja, após os anos 1950.

Da arte Autônoma às suas relações com o mundo
Desde então, seja no Brasil, seja no exterior, a arte abandonou a discussão moderna de seu caráter autônomo, para voltar a ter relações com o mundo, com seu contexto, com o observador. Assim, nos anos 1980, a arte não abandonou esse primado, apenas retomou algumas práticas, já que todas as fronteiras foram rompidas. Nesse sentido, Leonilson (1957-1993) vem sendo apontado como o grande destaque dessa geração, com forte reconhecimento internacional, como atestam suas obras incorporadas a coleções de importantes museus como o MoMA, de Nova York, a Tate, de Londres, e o Centro Pompidou, de Paris.

Leonilson é um ótimo exemplo dessa geração. Ele não só pintava como bordava, criava instalações, costurava e produzia objetos tridimensionais. O suporte não era uma questão, nem estava no centro de sua poética. Em seus trabalhos, arte e vida estão absolutamente integrados, pois o artista construía um mapeamento delicado de suas fragilidades como membro de um grupo constrangido pela ascensão da aids. Amor, prazer, amizade e desejo eram temas comuns em Leonilson, já num momento de refreamento do hedonismo que marcou o início de sua geração.

Ativação do espectador e engajamento

No entanto, existe outra linhagem na produção nacional, que seguiu abordando questões sociais, mesmo que a ideia da participação esteja, muitas vezes, mais vinculada à construção do trabalho do que à sua apresentação propriamente dita.

Rosângela Rennó (1962-) e Rivane Neuenschwander (1967-) são dois exemplos desse segundo caso. Apesar de muito distintas em suas estratégias dispositivas, ambas trabalham com a ideia de obra relacionada a objetos e imagens já existentes. Rennó, em alguns casos, cria partindo de arquivos; Neuenschwander realiza cartografias um tanto aleatórias, mas que significam mapeamentos possíveis no mundo contemporâneo. Ambas, no entanto, possuem obras que também pedem a participação do espectador, seja no leilão que Rennó organizou na 29ª Bienal de São Paulo, seja em (……….), 2004, que Neuenschwander apresentou na 52ª Bienal de Veneza, onde o público podia escrever cartas em sete máquinas de datilografia, mas que sempre continham o sinal “.”.

Esse balanço entre a ideia de ativação do espectador e a abordagem de questões sociais faz de Cildo Meireles (1948-) o artista brasileiro com maior reconhecimento no Brasil e no exterior, como se pode verificar na repercussão de sua mostra na Tate Modern, no ano passado.

Meireles reúne a tradição do engajamento da arte nos anos 1950 e 60, como se percebe na série Inserções em Circuitos Ideológicos, com as impressões de “Yankees go home” nas garrafas de Coca-cola, ou com a pergunta “Quem matou Herzog” carimbada em cédulas de dinheiro, com a criação de ambientes experienciais, como Desvio para o Vermelho (1967-1984), Missão, Missões (Como Construir Catedrais) (1987), Através (1983-1991) ou Babel (2001).

Ação social e ambientes interativos também repercutem na obra do carioca Ernesto Neto (1964-). Em suas obras instalativas, onde o visitante pode deixar seu corpo à vontade e ainda sentir o cheiro de especiarias, que tanto podem evocar o Natal para um europeu como os mercados populares para um brasileiro, Neto recupera a vontade de ativar todos os sentidos, como pretendiam Oiticica e Clark. Mas o artista tem ainda seu lado engajado dentro do próprio circuito da arte, por meio da galeria A Gentil Carioca, com os artistas-sócios Laura Lima e Marcio Botner, que criou uma nova cena de arte no Rio de Janeiro.

Tanto em Meireles como em Neto, Rennó e Neuenschwander constata-se que a matriz conceitual/experimental que costuma ser apontada em Oiticica e Clark nunca foi rompida, mas ganhou apenas novos contornos. Contudo, tanto Oiticica como Clark tendiam ao desaparecimento da obra artística, diluindo-a no cotidiano, radicalidade que se verifica em poucos artistas jovens, mas que tem em Renata Lucas a figura de maior repercussão, seja participando com trabalhos “invisíveis” da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, que justamente buscou ma- pear os “herdeiros” de Oiticica, seja na 53ª Bienal de Veneza, em 2009. Todas essas linhagens experimentais seguem sendo renovadas, atualmente, em artistas como Marcelo Cidade, André Komatsu e Carla Zaccagnini, entre tantos outros.

Essas experimentações todas, aliás, sempre estiveram expostas na Bienal de São Paulo, uma de suas grandes vitrines. Por outro lado, a fraqueza institucional dos museus brasileiros não acompanhou o mesmo processo, o que se constata em suas coleções: a aquisição é praticamente nula. Mesmo o colecionismo privado é limitado, e galeristas nacionais advertem que as obras mais importantes da produção nacional têm sido vendidas a colecionadores estrangeiros.

Nova fase

Agora, vislumbra-se uma nova fase. Com o mercado interno aquecido e o crescimento do interesse pelo Brasil no exterior, é de esperar que a produção nacional conquiste ainda outros patamares. Se por um lado essa produção, do ponto de vista comercial, está longe de se equiparar à produção internacional, sua prática, de fato, é muito mais sólida e consistente que a de outros paí-ses em ascensão, como Índia e China.

A arte praticada no Brasil, especialmente após os anos 1960, mas já visível em artistas precursores como Flávio de Carvalho (1899-1973), sempre representou uma alternativa original ao modernista europeu, que depois foi transferida ao grande império da segunda metade do século 20, os Estados Unidos.

Talvez, antes, a limitada inserção mercadológica e o distanciamento do Brasil dos centros de poder tenham ajudado a construir esse modelo alternativo, mesmo que o diálogo com a produção de ponta internacional tenha sido constante. O desafio agora é, participando do sistema como jogadores plenos, saber para onde os artistas brasileiros querem trilhar.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/

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