quarta-feira, 11 de agosto de 2010

OBA, TEM UMA CEARENSE NA MINHA COZINHA por Lira Neto

Dona Socorro chegou aqui em casa faz três semanas. Não lhe peçam firulas gastronômicas ou ousadias culinárias. Ela não é de inventar na cozinha. Não é exatamente um Alex Atala, mas sabe preparar um arroz com feijão que minha mulher adora, uma tapioca fininha de dar gosto, um ovo frito com gema meio dura, meio mole, que é assim uma obra-prima.

Morando há mais de 30 anos em São Paulo, a cabocla fortalezense vinda do bairro da Serrinha felizmente não perdeu o sotaque carregado, o jeitão despachado, a cearensíssima sem-cerimônia. "Tu num quer mais um tiquim de farofa?", pergunta-me, à hora do almoço, com aquela prosódia característica que me remete às origens suburbanas. "E a bixinha num vai cumê, não?", indaga, os olhos por cima dos óculos, vendo minha filha com cara de pouco apetite. "Tá de fastio, num é? Tadinha", lamenta. "Deve ser verme", conclui.

Quando fala, além da peculiar e quase comovente falta de noção, dos diminutivos sem conta e da flexão deliciosamente imperfeita da segunda pessoa do singular, dona Socorro engole também o "d" dos gerúndios, essa outra marca típica da cearensidade. Com ela, não é "cozinhando"; mas "cozinhano". Não é "temperando"; mas "temperano". Aqui em São Paulo, onde os gerúndios são estendidos a perder da conta ("cozinhaaaannnnnndo", "temperaaannnnndo"), isso vale como um afago aos ouvidos de um cearense desterrado há quase uma década.

Com a chegada de dona Socorro, comecei a fazer, por conta própria, um inventário das palavras que andavam meio sumidinhas aqui de casa: "sereno" (para definir o orvalho noturno), "arrochado", "abestado", "nebrinando", "arrudiar", "chulipa", "batoré", "avexado", "cuxia" (meio-fio), "lascado", "pebado", "ispilicute" e "assanhado" (no sentido de despenteado, entenda-se).

Minha filha, nascida e criada em São Paulo, acha engraçado o jeito de dona Socorro falar, muito embora, às vezes, não consiga compreender o que ela diz. Não só por questões de vocabulário, mas também de pronúncia. "Dinheiro", por exemplo, vira dim-êro. O "h" do dígrafo desaparece cearensemente em algum desvão misterioso da fala e o segundo "i" vai para o espaço. "Cozinha", por sua vez, soa como algo
próximo a "cuzi-ã".

Talvez por uma sábia lei do menor esforço, os "erres" finais dos verbos também se evaporam. "Vou fechá a porta da cuzi-ã prumode num passá o chêro de cumida pru restu da casa", avisa a previdente dona Socorro, fonte obrigatória de qualquer pesquisador disposto a elaborar um atlas linguístico da fala cearense. Aquele "prumode", então, é supimpa. Uma preciosidade. Adoro.

O mais curioso é que, apesar de ter chegado há tão pouco tempo para trabalhar conosco, dona Socorro criou uma empatia imediata com todos aqui em casa. É como se a conhecêssemos desde sempre. Há algo de verdadeiramente familiar nessa certa ausência de modos, nessa maneira de falar ao mesmo tempo áspero e dengoso, nesse jeito pouco cerimonioso e desabusado de ocupar espaços. Desde que ela não esparrame na comida aquele tempero abominável chamado cominho, ficará tudo bem, prevejo.

Pelo menos, desde que chegamos em São Paulo, é a primeira vez que temos alguém na cozinha que sente prazer, para sorte nossa, em usar e abusar do delicioso coentro, coisa que os paulistas execram. Semana passada, quando eu trouxe do supermercado um suculento rabo de boi, dona Socorro mostrou que seu forte é mesmo a cozinha rústica nordestina, uma de minhas maiores saudades do Ceará. Não é todo dia que se vê uma rabada com coentro como aquela, nesta cidade que se orgulha de ser a capital gastronômica do Brasil.

A fala e a comida de dona Socorro têm o mesmo sabor e o mesmo encanto simples de coisas que nos remetem, aqui na Pauliceia, a uma outra fruição do tempo, a um outro ritmo de vida: o ritmo do balanço de rede, do baião de Luiz Gonzaga, do arrastar de chinelo no alpendre.

Dona Socorro também é dona daquele peculiar e atávico senso de humor cearense, mesmo quando verdadeiramente ela não quer nos fazer rir. Mãe do Rogério, zelador do prédio, jura que o filho, quando nasceu, era até bonitinho. "Mas a gente só via a cabeça do bixim, de tão grande que ela era", comenta, sinceramente comovida, enquanto mexe o caldo no fogão.

Se já demonstrou intimidade suficiente com temperos e panelas, dona Socorro ainda não se entendeu bem foi com a maquininha de café expresso. Atrapalha-se toda com minha engenhoca de estimação. Fica apavorada quando não consegue apertar os botões certos.

Dia desses, ao ver sair apenas água quente da máquina, desesperou-se de vez. Quando minha mulher entrou na cozinha, percebeu-lhe o pânico. Indagada se havia lembrado de colocar antes a cápsula de café no local apropriado, dona Socorro fez cara de alívio. "Vixe, é mesmo, muié!", exclamou e, de tão contente, ato contínuo, sentou um tapão nas costas de Adriana, à guisa de agradecimento.

O tapão nas costas, penso eu, é uma das instituições mais legítimas e um dos traços mais característicos da cultura do Ceará. A expansividade de Dona Socorro me fez lembrar do garçom que, certa vez, em um restaurante distinto de Fortaleza, atendeu-me também com um baita tapa no ombro, como demonstração de cortesia e gentileza: "E aí, minha joia, vai cumê o quê?"

Já avisei à minha mulher que, da próxima que dona Socorro se atrapalhar na hora de fazer o café expresso, pode deixar que eu resolvo. Vou chegar de repente na cozinha e exclamar, sorrindo, caprichando no meu melhor cearencês: "Ah, uma jaula...!!!".

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