segunda-feira, 6 de maio de 2013

A EPOPÉIA DO TEIMOSO INTRÉPIDO




Por Romeu Duarte


“Não, a cidade não é assim”, pensou ele, “não do jeito que aquele mau caráter escreveu no jornal”. “Esses intelectuais são uns pessimistas, aves de mau agouro, adoram exagerar o lado ruim das coisas, amam criticar tudo o que lhes aparece na frente, não têm proposta para nada, conheço bem essa raça”, ruminava, enquanto decidia o que fazer naquela tarde. Agenda cumprida pela manhã, tinha agora o período vespertino todinho para provar que aquele cronista enjoado nada mais era que um farsante, um sujeito que esculhambava a pobre Fortaleza para tentar dar ares literários à sua reles prosa. “Um fuleiro, isto sim!”, bradava silenciosamente aos seus invisíveis botões, “Ninguém jogará a minha lourinha na rua da amargura!”.



“Sabe o que vou fazer para desmascarar esse escritorzinho de meia-tigela?”, disse de si para consigo, “Simples: vou dar uma voltinha aqui no São João do Tauape, que é um bairro simples porém honesto, circulo por algumas poucas quadras, fotografo o que vejo e depois mando um texto para o jornal junto com as fotos. Tiro e queda! A cidade é suja, desordenada, desigual, com engarrafamentos mil etc., ô ladainha chata! Aí dentro, verme, vá azalar o cão! Mando ver no contraditório só de mal. Minha cidade é só a massa!”. Com esse firme propósito no quengo, deu início ao seu vingativo périplo, inaugurando-o com uma violenta topada que bruscamente o lançou ao chão. “Égua, esse desnível na calçada é cruel, lá se foi o chaboque do dedão, ai...”. Levantando-se, seguiu mancando em busca do seu objetivo.



“O diabo é quem anda uma hora dessas por aqui. Calor brabo, mal dei os primeiros passos e já estou todo suado. Também, não tem uma árvore. Em compensação, o que tem de out-door e placa... Eu me abro é do povo esperando ônibus, todo mundo enfileirado aproveitando a sombra do poste. Ô canelau pra sofrer...”. De repente, o bólido prateado do ano, na contramão para escapar de algum engarrafamento, raspou a coxia empoçada com as sujas águas do fim de abril, dando um banho mal-cheiroso no nosso urbano explorador. “Tu vai ver, fidumaégua, tu vai barroar lá na frente com o Circular 2!”, rugiu ele inutilmente para o motorista do veículo, certamente gargalhando da presepada cometida. “A camisa branca zerada toda listrada de lama, igual à do Time do Canal, e eu nem torço pela carniça...”, lamentou-se, xingando a exígua largura do passeio e culpando-a por seu infortúnio: “Calçadinha estreita essa, lai vai, e a negrada ainda bota os carros em cima. Ô povo bom de peia...”.



Mais à frente, dobrando a esquina, deparou com uma obra irregular em pleno curso, cujo canteiro havia incorporado sem cerimônia a calçada. “O que era, hein?”, perguntou-lhe o mestre, grosso que só papel de embrulhar prego. “Tá olhando o quê aqui, cara? Tu é fiscal da prefeitura? Tá querendo bola, né?”, inquiriu-lhe o proprietário do imóvel, do mesmo naipe do mestre. “Não, sou seu vizinho e quero lhe dizer que...”, começou a responder o nosso herói quando foi rispidamente cortado pelo promotor da marmota: “Que vizinho o quê, cara, tu tá querendo é criar problema pra mim. Curiosozinho você, né? Bola aqui não tem, mas bala tem e é muita...”, abarcou, acompanhado do seu disposto operário com um tijolo na mão. A muito custo, caxingando, dali escapuliu sofregamente para lá adiante novamente ir ao chão, ganhando dos seus algozes sonora vaia, no melhor estilo cearense. “Quem foi o miserável que botou essa escada e essa rampa de acesso de carro aqui? Agora, além do chaboque do outro dedão, lasquei os dois joelhos. O celular, só outro, adeus retratos. O que não dirá o povo lá de casa quando vir meu estado. Vão frescar com a minha cara: ‘Joelho ralado, né, bebê?’”, choramingou, quase desistindo do seu épico intento. “Não importa”, convenceu-se, “tenho que continuar, não posso fraquejar agora, isso são reveses episódicos, Fortaleza é um pudim de gentileza urbana, sigamos em frente”.



Outra esquina dobrada, deu com um grupo de catadores de lixo fazendo a coleta seletiva dos despejos de um bar, àquela hora fechado, que também havia tomado o passeio e ali instalado parte do seu salão, coberto por um amplo beiral do telhado. Ávidos por detritos plásticos, metálicos e de papel, espalhavam a esmo os restos orgânicos na via e na calçada-lounge. “Turma boa, isso aí não pode, vai encher de mosquito e depois...”, tentou argumentar, quando foi interrompido pelo líder da tropa: “Qual é, chefia, fica na tua, nós aqui sobrevivendo do lixo e tu ainda vem encher o saco da gente, cara? Isso aqui é social, doido, não fosse isso a gente podia estar aí na rua, assaltando, matando. Vai te lascar, abestado”, largou o manda-chuva, já se preparando com seus colegas para o conflito. Cansado de guerra, nosso infeliz aventureiro resolveu deixar a coisa por isso mesmo, ganhando o caminho de casa.



Já no umbral da moradia, refletiu: “Só pode ter sido azar. Peguei meu bairro num dia ruim. É isso, vou dar outra chance a ele. Para o inferno com aquele imitador de Aírton Monte! O que me invoca é eu não ter saído do meu quarteirão e ter passado por tudo isso”. Lá dentro, ouviu fracas palmas vindo de fora. Um mendigo. “Restinho de almoço, patrão, não almocei nem jantei”. Pegou uma palma de bananas-maçãs madurinhas e levou-a ao andrajoso pedinte. “Banana, é? Num tem outra coisa, não? Banana, taí uma frutinha que eu não gosto. É por isso que eu digo que é melhor roubar do que pedir...”.

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