Os foguetes
estourando nas ruas, os cachorros ganindo e se escondendo debaixo das camas, a
cerveja escorrendo gelada goela abaixo, as insuportáveis e renitentes vuvuzelas
troando no meio do mundo, tudo conspira para que se dê voz à memória. As copas
a que assisti desfilam ante meus olhos, umas mais nítidas que outras, poucas
felizes, a maioria de má lembrança, todas inesquecíveis. Criado num meio em que
o futebol era mais que uma religião, não poderia ser diferente. Em todas, a
presença central de meu pai, vivo ou não. Vejo-o ainda nervoso, xingando os
erros do nosso escrete, prestes a jogar uma chinela na televisão, enfezado com
a ignorância de minha mãe e minha tia, que não entendiam a razão de ser de um off-side...
Passando por
cima da de 1966, época em que eu era um menino mais interessado em arraia do
que em bola, estreei na de 1970, de deliciosa rememoração. E que debut: vibrar com um timaço conduzido
pelo gênio de Pelé, a astúcia de um Tostão, o cérebro de um Gérson, a raça de
um Jairzinho e a patada atômica de um Rivelino. Não teve para ninguém. Quando vencemos
a Inglaterra, no segundo jogo, tive a certeza de que, depois de 1958 e 1962, ganharíamos
mais uma vez o dourado caneco e, de quebra, o tão sonhado tri. O tirombaço de
Carlos Alberto estufando a rede de Albertosi quase arrasa a vila da Base Aérea
naquele Brasil 4x1 Itália. Os amuados de então, como os de hoje, invocados com
aquela dura conjuntura, foram os primeiros a comemorar.
Seguiram-se tempos
opacos, ruins. Disseram para o brasileiro que ele deveria desaprender a jogar o
seu futebol-arte e adotar o jeito rude e mecânico das seleções européias. Em
1974, na Alemanha, levamos um vareio de bola da Holanda, defendida por um time
que a todos encantava, tendo à frente Johan Cruijff como maestro. Em 1978, fomos
campeões morais na amordaçada e torturada Argentina. Paolo Rossi, por três
vezes no Sarriá de Barcelona, destruiu, em 1982, uma de nossas melhores
esquadras. No Mundial de Maradona, o disputado no México em 1986, os pênaltis perdidos
por Zico, Sócrates e Júlio César contra a França foram a nossa cancela nas
quartas-de-final. Caniggia, malandro, na Itália em 1990, fechou o nosso caixão
nas oitavas.
Em 1994, vinte e
quatro anos nos separavam de nossa última conquista. Nos Estados Unidos, num dos
mais fracos campeonatos já registrados, o Brasil sagrou-se vencedor numa bisonha
disputa por pênaltis com a Itália de Baggio, que mandou a bola por cima da
trave do Taffarel. O Opção da Praia de Iracema, do saudoso Haroldão, pegou fogo
nesse dia. Reaprendemos a jogar o esporte bretão? Quatro anos depois, na terra
dos gauleses, demos um dos maiores vexames de nossa história com o piripaque do
Ronaldo Aécio, digo, Fenômeno(?). O de 2002 foi travado no outro lado do mundo
e nós, agora Família Scolari, em mais uma oportunidade, ganhamos a taça, fomos
penta degustando panelada com cachaça no desjejum. Difícil era ir trabalhar depois...
A distraída
ajeitadinha do Roberto Carlos no meião selou a nossa sorte em 2006, quando a
Itália (que sempre chega de mansinho) de Materazzi tirou o Zidane do sério. A
Fúria espanhola, na África do Sul, levou o derradeiro, jogado em 2010, aquele
no qual o Messi prometeu e não cumpriu. Uma afirmação: fossem menos as libações
nas partidas, as recordações seriam mais vívidas, porém, quem sabe, menos
interessantes. Resta-nos agora torcer pelo hexa em meio aos prós e contras das
paixões desenfreadas, das passeatas auriverdes e escuras, de quem nos aperta ou
esmaga a mão. Olho para a poltrona vazia na casa paterna e sinto falta de meu
pai. Na gaveta, esquecido, um bilhete com a letra dele, bom augúrio. Ah, vida,
eterna caixinha de surpresas, como o futebol.
Fonte: jornal O POVO de 16 de junho de 2014
Imagem: www.houseinrio.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário