Por Romeu Duarte
A Dilson Pinheiro
Desigual por
natureza, desde sempre Fortaleza assistiu de camarote a essa sua (imorredoura?)
característica plasmar seu carnaval. Justo em meados do século XIX, quando a
pagodeira por aqui começou com o lusitano nome de Entrudo, João Nogueira já
reclamava do mau gosto e da bagunça que os foliões de então faziam com um
mela-mela à base de bexigas d’água, cera de sapato e farinha de trigo. De um
lado, o canelau travestido em papangus, com seus trajes em xadrez, assustando a
garotada na rua. De outro, os bem de vida em suas sociedades carnavalescas, nos
bailes fechados dos clubes Iracema e União Cearense. No corso, a elite se
espremia no miolo da via e a arraia miúda arrasava nas coxias. Brigas, estas só
quando os remediados topavam os ricos.
Nas primeiras
décadas do século XX, para além da Major Facundo, os cortejos carnavalescos
ganharam os bulevares, já acompanhando a expansão da cidade. Ficaram famosos os
realizados no da Conceição (Dom Manuel), marcados pelos desfiles de belas mulheres
de vida airada em caminhões. Antes, a patuléia se esbaldava nos sambas de areia
e umbigadas da periferia, enquanto a comunidade negra entoava os dolentes
cantos do maracatu, ainda hoje um símbolo de resistência cultural. As
marchinhas ganhavam terreno a cada ano, com letras marotas ou de duplo sentido
sobre o foxtrot. Piriguetes da época, as coca-colas ganharam seu cordão nos
anos de 1940 por pirraça de uns sargentos da Base, cismados com o grude das
moças nos milicos ianques.
Diz um amigo meu,
para rebaixar a idade que lhe pesa nos couros: “sou do tempo da Xuxa para cá”.
Não sou tão moleque assim: lembro-me perfeitamente dos dias de Momo brincados
no asfalto da Duque de Caxias por escolas de samba, blocos, cordões e
maracatus. Ispaia Brasa, Império Ideal, Leopoldina Show, Prova de Fogo, Ás de
Ouro, Ás de Paus, Leão Coroado, dentre outros, na já distante década de 1960,
faziam a minha alegria de menino. Narcélio e Paulo Limaverde narrando a marcha
dos brincantes, aquele circunspecto e este dando gaitadas mil atrás do Bicho
Chulapão. Irapuan Lima, Toinho e o rei Javeh na corte do samba instalada no
Flórida Bar. Animando as festas das agremiações elegantes, Ivanildo e seu
Conjunto. Memória de um tempo bom.
Mas chegam os
anos de 1970 e 1980 e com eles a conversa de que Fortaleza não tinha carnaval,
que era a capital do descanso na farra de fevereiro, mesmo com os Enviados de
Alá botando para ferver com seus caftas listrados. Foi o tempo em se tornou
costume arribar para Paracuru, Aracati, Beberibe, Camocim e outras paragens
para curtir o carnaval de praia. Sem a tal da Lei Seca, casas alugadas com mais
de sessenta pessoas, birita rolando de manhã, de tarde e de noite, trio
elétrico, paredão de som, banho de mar à fantasia, o azul de Jezebel no céu de Calcutá.
O carnavalesco abandono da Loura findou lá pelo meio da década de 1990 graças à
teimosia de uns poucos heróis, pais do pré-carnaval, que sacaram que o lance
era aqui, pois quem é de bem, fica.
Todas essas
lembranças me assaltam enquanto assisto à sensacional apresentação das Gatapira
na Praça General Tibúrcio, na Terça-Feira Gorda, nosso Mardi Gras. Vindo da
animação do Sanatório Geral lá do Benfica e já de olho no Largo da Mocinha (já
sabendo que o Luxo da Aldeia Concentra Mas não Sai), uma certeza me invade: por
mais que uns não queiram ou apóiem, temos carnaval, sim, dos bons e o que é
melhor, fruto de um desejo popular, de gente feliz, pacífica e ordeira que dá
valor às belezas da cidade e, por isso, merece respeito. Quem pensou em vir
para cá para dormir que vá armar sua rede noutro canto deste imenso país. Quem
só acordou agora, que se pegue da coisa e não vacile mais. Os leões, doidões, dançam
em baby-dolls de nylon.
Fonte: jornal O POVO, 10 de março de 2014.
Imagem: http://showsdegracaemfortaleza.blogspot.com.br/2014/03/as-gata-pira-na-praca-dos-leoes.html
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