Por Romeu Duarte
Arre, finalmente
chegamos. Até para se enterrar, o sujeito tem que sofrer num engarrafamento. O rabecão
levou bem uma hora entre a funerária elegante na Aldeota e o Cemitério São João
Batista, entalado na Duque de Caxias apinhada de carros. Acho que o semblante
do distinto aí, encerado como são os dos defuntos, era mais simpático na saída
do velório. Perder tempo no trânsito enfurece qualquer um, mesmo que seja para
vestir o paletó de madeira. Pessoas de preto, pessoas de branco, muitos óculos escuros,
aqui e ali um desmaio no portão do campo santo. Pipoqueiros, doceiros e
cafezeiras, atentos abutres. No entorno, muito lixo e casas em mau estado
alvejadas pelo sol da tarde. É, parece que vai ser um sucesso de público o
enterro do figurão.
Nunca fez mal a
ninguém, nem bem também. Sempre viveu nessa zona cinza e penumbrosa dos míseros
favores, dos pequenos expedientes, dos falsos e demorados abraços. Velho e
abandonado pelos familiares, acabou vitimado por uma conspiração fatal das
doenças iniciadas pelo fonema “K”, que tanto abatem os idosos: queda, catarro,
coração e caganeira. O esquife é agora retirado do veículo fúnebre e posto
sobre o carrinho que o levará à capela pela via ladrilhada. Ergo a vista e
enxergo a multidão de túmulos à volta. A necrópole comete os mesmo erros da
cidade dos vivos, o bairro rico de um lado, com suas sepulturas caras e
luzidias, e o bairro pobre do outro, com suas covas rasas e ossários imundos.
Não poderia ser diferente, morte e vida irmãs.
Aos poucos, vai
sendo preenchida a nave do oratório. Gente importante, gente humilde, gente
simplesmente. A viúva e seus dois filhos, todos imperturbáveis em suas roupas austeras,
dir-se-ia aliviados com o passamento do esposo e pai. Era nítida a impaciência
da mulher, bem como o desejo de que tudo acabasse logo, sentimentos
manifestados com longos suspiros e resmungos. Um bêbado, como sempre, irrompe
na sala e executa o seu ridículo número: “Fulano, que maldade é essa de ir
embora assim? Tão bonito e arrumado no caixão, parece que vai para o Rio de
Janeiro. E agora, amigo, como é que eu vou me virar?”. Um dos filhos arrastou-o
vigorosamente pela gola da camisa e jogou-o lá fora, entre as ervas daninhas, o
padre entoando justo o cântico final.
O cortejo,
ataúde à frente, seguiu pela alameda principal do cemitério. Vi quem há muito
não via, o funcionário público corrupto de olhos vermelhos, a bela morena do
passado de face encarquilhada e passo torto, o atlético juiz de outrora ora
entrevado numa cadeira de rodas, todos corrompidos pela cruel e avassaladora
passagem dos dias. As árvores do caminho, os braços-galhos entrelaçados, faziam
a sombra sobre nós. Comentário baixinho, mas audível, de uma víbora acolá: “Quando
voltar para casa, vou tomar um senhor banho com Aseptol, botar para lavar esta
roupa com o sabão mais ativo e bater os sapatos na entrada para tirar essa
areia. Ninguém dá fé dele, mas o cão mora aqui”. À direita, a tumba da família,
o buraco no chão, as gavetas, fim de papo.
Os coveiros, em
rotos macacões, já desciam o de cujus
para sua derradeira morada quando ouve-se um grito feminino na franja da
pequena multidão: “Parem já com isso! Interrompam o sepultamento! Respeitem a
dor dos outros, de quem sempre foi humilhada, de quem passou a vida escondida
com medo. Deixem-me vê-lo pela última vez!”. Era a outra, a segunda mulher do
finado (lá fora, disseram-me haver mais duas), um arquivo vivo e sombrio, cheio
de mágoa e rancor, agarrada aos filhos rapazes. “Siga avante, mestre, enterre o
homem que eu mesmo não vou dar esse gosto a essa cunhã”, rasgou a matriz,
apoiada pelos rebentos. Os da filial não gostaram do desfecho e partiram para o
pau. “Fortaleza, ô terra de muro baixo”, chorou a matrona, o lábio sangrando.
Fonte: jornal O POVO de 5 de maio de 2014.
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