segunda-feira, 12 de maio de 2014

MUNDO ANIMAL


Por Romeu Duarte
Gatos no Parque do Cocó
Operoso fiscal da Natureza, indago-me sobre o motivo de tantos gatos soltos na cidade. Nas praças, nos parques, nas instituições públicas, nos terrenos baldios, uma multidão de bichanos. De pelagem e olhos de cores diversas, siameses, falsos persas, vira-latas, pé-duros. Sujos, famintos, magros, tristes abandonados à própria (má) sorte. Machos, fêmeas, pivetes, às vezes famílias inteiras dormindo o sono dos miseráveis na sombra da tarde. Qualquer cheiro de comida atrai rapidamente um magote deles, os rabos levantados como se dissessem “estamos aí”. Seus olhares desmazelados e sem rumo são de cortar o coração, até mesmo o de gente como eu, avessa a bicho. Fornicando sem parar, reproduzem-se aos montes, miados, onde tanto leite para tantas bocas?
Realmente, o que fez com que os desgraçados felinos, neste pedaço da Terra, tivessem o mesmo destino dos jumentos, estes errando numerosos e sem serventia pelas ermas estradas do sertão? Sou do tempo em que os descendentes de Miacis, caseiros, urbanos e domésticos, eram ultra-populares animais de estimação. Cobertos de mimos e carinhos por seus donos, passeavam sua independência com o ar blasé que lhes é peculiar. Os cães, seus rivais, é que viviam na pindaíba, largados por aí, à mercê da raiva e das demais doenças da sarjeta, na maior cachorrada. Hoje, os totós só aparecem nas ruas em raças finas e caras e sob a vigilância atenta dos seus amos, pobres reféns do carma de limpadores de cocô canino. Ah, afável mundo cão...
Um pensamento leva a outro: onde estão os passarinhos, que não os vemos mais? Antes, cruéis e insensíveis, trazíamos os emplumados nas gaiolas a nos agradar a vista e os ouvidos. Depois, pressionados pela voga ecológica, abrimos as portas de suas prisões para seu vôo de liberdade. Canários, galos-de-campina, curiós, graúnas, corrupiões, quanta saudade de vocês. Agora, só os pardais, feia e desafinada estirpe de penas, é que dão as caras por aqui. Mudando de poleiro, é de se admirar a atual abundância de pombos. Dia desses, ao passar pelas bandas da Catedral, divisei uma imensa quantidade deles pousados nas cornijas do Palácio do Bispo e nas fiações. “São os carteiros do passado”, disse ao taxista. Grunhiu ele: “Isso aí é bom é torrado...”.
Oh, Mãe Poderosa, o que estás a nos dizer com esses sinais? Quais são os teus planos, os teus desígnios? Que mensagem sugeres no rasante impiedoso e mortal do gavião, migrante do interior instalado como um posseiro no coração da Aldeota? Ou no bater de asa de mesma violência do seu igualmente ex-matuto colega carcará, as garras afiadas na carne da pomba sem fel? Ou na bocarra em serrilha do tubarão da Barra do Ceará, mandando surfista para o hospital com a bunda cortada? É vingança o que queres, praticada através dos teus filhos, ditos irracionais, contra nós, os dotados de razão e de burrice na mesma medida? Olho para o céu e vejo a ronda alta que os urubus fazem sobre as nossas cabeças. Uma pergunta, atroz: vai ter borboleta na primavera?
Volto aos felídeos do começo. Enquanto digitava estas mal-traçadas, eles vieram ter ao pé de mim, ronronando, acariciando-se nas minhas pernas, miando seu falso afeto, esmolando um naco de minha piedade. Se não sou exatamente um fã ardoroso do universo animal, também não pratico ou estimulo maldades contra os integrantes deste reino. Levanto-me sem adeuses ou mesuras vãs e vou ao encontro da deusa Vésper. O sol, em seus últimos raios, brinca de se esconder por trás do mangueiral do Benfica. A juventude, com seus fartos cabelos e roupas coloridas, é uma fauna bonita de se ver. Ao meu lado na calçada, silente, uma mendiga reúne os rebentos mirrados sob uma colcha da cor do chão para mais uma noite sem pai, sem paz e sem pão.

Fonte: jornal O POVO de 12 de maio de 2014; Imagem -  http://blogtribunaanimal.blogspot.com.br

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