Chuva em Crateús, Ceará |
Chove, chuva
benfazeja, enche os rios que desde sempre correm para o mar. Realiza o milagre
da vida em teu instante no ciclo da água, da nuvem para o açude passando por
ti. Refresca esta terra tão árida, tão carente da tua presença, preenche as
cacimbas barrentas, dá de beber aos homens, aos bichos e às plantas sedentas,
devolve o viço a todos nós. Aviva as flores, adocica os frutos, realça o verde
da paisagem além. Engrossa o córrego, faz dele riacho, Salgado, Jaguaribe,
Acaraú, Coreaú. Derrama-te onde é preciso, no sítio onde te imploram, acendem
velas e oram. Não te faças de rogada, chove mesmo com vontade, que te querem
tempestade com raio, relâmpago e trovão, ensopando a rede branca onde os
amantes, nus, se conhecem melhor.
Chove, chuva malfazeja,
sobre esta cidade sofrida, desaba aos cântaros sobre esta urbe despreparada
para te receber. Alaga as vias, destrói os pavimentos, derruba as árvores,
transforma os vales em lagoas. Entope as galerias, destampa os bueiros, prepara
armadilhas para os carros sob o viaduto mal planejado. Inunda as casas, expulsa
as famílias, dá sentido às áreas de risco, afoga o menino que não sabia nadar.
Constrói piscinas para as cobras e os ratos, maternidades para os mosquitos da
dengue, viveiros para as mortíferas bactérias. Como se não fora pouco, torna em
sabão as calçadas para as quedas dos idosos, as ruas para as batidas dos
automóveis, o piso da varanda para o escorrego da vizinha chata. Cai, pois, qual
maldição, canalha, ai de nós.
Chove, chuva
bendita, desperta no pinguço a ânsia doida por cana e cajá. Ao meio-dia, sugere
ao faminto, como repasto, um cozido untuoso, o pirão grosso e escuro do sangue bom
da carne gorda. Ontem, já te prenunciava o halo brilhante em torno da lua.
Hoje, logo mais, o arco-íris será o teu epitáfio. Enquanto por aqui imperas, com
tua autoridade pluvial, distrai-nos com o tilintar de tuas gotas nas folhas,
nas vidraças, no chão. Dispara o balé negativo dos limpadores de pára-brisas. Faz-nos
não querer acordar, habitantes do gostoso mundo da preguiça que há sob as
cobertas. Manda o pensamento para bem longe, para terras de dias cinzentos e
invernosos assim, lugares descritos pela pena de um Dickens. Gera cheiros,
lembranças de uma infância que já não há.
Chove, chuva
maldita, despenca sobre os pobres miseráveis que vão trabalhar. Ei-los
encharcados, molhados até os ossos, o cabelo escorrido, a maquiagem borrada, a
se espremerem como sardinhas recém pescadas no interior dos ônibus-navios. Dá
cabimento ao moleque sacana que, vendo as janelas cerradas, converte a
atmosfera do coletivo numa podridão atroz. Incita o sadismo entre os
motoristas, fazendo-os passar velozmente sobre as poças com o único intento do
tripúdio aquático sobre os desvalidos transeuntes. Propicia gripes, acende
febres, faz pingar narizes, transmuda roucas as vozes com o teu gotejar ou o
teu mormaço, mortal sereno. Mantém a ferros a menina enfermiça em casa, ela
louca para ganhar o bredo, não vai, já disse, chuva má.
Lá fora, o
dilúvio. Zeus, São Pedro, Tlaloc, alguém, quem está no comando aí em cima? O
céu está chorando, diria Clapton, de dor ou de alegria? Ah, como é dúbia minha
relação com a chuva, de amor e ódio, de enlevo e abuso. A sirene de um carro de
bombeiros corta a tarde. Mais uma tragédia dentre tantas na capital. Fortaleza
se desmancha a olhos vistos; escorrerá pelo ralo? Em meio ao aguaceiro que
agrada e perturba as pessoas do outro lado desta parede, como não lembrar as
palavras finais do louro replicante, naquela Los Angeles poluída e terminal do
filme inesquecível: “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas
na chuva”. Já vi tanta gente com esse carma: ser usado nas horas ruins e depois
esquecido na bonança. Tal um guarda-chuva.
Fonte: jornal O POVO de 14 de abril de 2014. Imagem: http://crateus.ce.gov.br
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