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Por Romeu Duarte
À memória
de Cláudio Pereira
Dia desses,
dei-me conta de que fazia exatos 40 anos que lidava com a birita. Pois é, como
muitos dos meus contemporâneos, principiei cedo nas hostes etílicas. Dei o
pontapé inicial, lembro-me bem, na festa dos meus quinze anos. O guaraná
champagne já não me saciava a sede como eu queria, faltava aquele algo mais e a
cerveja estava ali, olhando para mim, pedindo para ser bebida. Ah, o primeiro
gole daquele líquido amargo, gasoso e gelado, cheio de mistério e promessas, a
gente nunca esquece. “Bom como o cheiro de cerveja”, disse Guimarães Rosa de Jó
Joaquim, loa em forma de símile em seu Desenredo. Doido para deixar de ser
menino, agora era criar jeito de homem. O álcool parecia ser uma boa,
principalmente se mamãe, fera, não ralhasse...
Os começos são
sempre difíceis. A ânsia de conhecer e dominar a prática do levantamento de
copo sempre esbarrava na falta de resistência do organismo a tanta ginástica. Disso
resultavam ressacas homéricas: o miserável o dia inteiro de molho, no escuro,
avesso a barulho, a todo momento chamando seus amigos Hugo, Juca e Raul. Mas,
como disse Albert Camus, “não se pode criar experiência, é preciso passar por
ela”. Só o tempo para forjar no corpo modos e maneiras de biriteiro, sutil exercício
este que precisa de um certo tipo especial de academia para se realizar: o bar.
Pela ordem cronológica de freqüência: Bar da Tia, Barbra’s, Barraca do Ideal,
Lido, Estoril, Choperia do Romcy, Bar do Aírton, Padaria Espiritual, Opção,
Alpendre, Cantinho, Helano...
A vodca lhe faz
dançar como um Fred Astaire e, de repente, faz o chão sumir sob seus pés.
“Motorista, let’s go!”; “Vamos para onde, senhor?”; “Ora, para minha casa!”; “E
onde fica a sua casa?”; “Jamais saberás!”. Uísque só após o crepúsculo e com o
estômago forrado. “Comigo não tem isso não, bebo na hora que eu quiser, na
minha barriga não tem relógio”. Vinho tinto para carnes vermelhas, vinho branco
para frutos do mar. “Bacalhau não é peixe, bacalhau é bacalhau, Periquita
nele!”. Porre de gim, além de grande, é sempre o primeiro e o último. “Para o
mundo, que eu quero descer!”. Cachaça, no banho de açude ou debaixo de chuva,
não tem igual. “Querida, vou dar um tempo na cana, mas deixe só passar essa
safra de cajá”. Presepadas mil: a cada trago, dez chistes.
A transformação
do suave amador de fim de semana no diarista polido e compenetrado. Quis saber
certa vez Adélia Prado: “Quantos sacos de arroz já consumi?”. Parafraseando-a,
pergunto eu: “Quantos rios da zinebra já bebi?”. Fará diferença? Claro que sim:
tantas boas amizades feitas nas mesas, generosas do tamanho da cidade, uma
turma imensa em que todos e todas se conhecem e se gostam, brindes espocando,
violões violando o silêncio besta com seus bordões, a lua dizendo adeus, o sol
dando bom dia, “Garçonzinho, me ajude, amigo, quero me embriagar”, quanta
saudade, Cláudio Pereira. Seria todo bebedor um alcoólatra? Nada disso: Mário
Quintana ergue a taça e diz: “Só se deve beber por gosto: beber por desgosto é
uma cretinice”. Evoé, Baco!
Que ninguém veja
aqui qualquer estímulo ou elogio a esse ofício, tampouco coisa de gabola ou
fanfarronice. Trata-se apenas do singelo testemunho de alguém que sempre só
encontrou prazer no que é, antes de tudo, uma arte. Há, claro, os que andam por
aí com um cartaz imaginário pendurado no pescoço, escrito assim: “Não dêem
bebida a este animal”. Fujo dessas figuras como o vampiro foge da luz solar.
Não é que o álcool degrade o homem; como afirmou Chesterton, o homem é que
degrada o álcool. Seria este um consolo para os males da vida, as decepções
amorosas, os reveses da sorte? Paulo Mendes Campos, cronista brilhante que
bebia mal, resumiu o lance numa bela imagem poética: “O homem entra no bar para
transcender-se: eis a miserável verdade”.
Fonte: jornal O POVO de 7 de abril de 2014
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