segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

ANO NOVO, VIDA NOVA?



Por Romeu Duarte

Todo final e começo de ano é a mesma coisa. Se o desejo não parte de dentro do sujeito, de alguma busca ou carência que se anseia solucionar, são imposições alheias ao nosso talante que nos determinam outra forma de viver. Diminuir os defeitos e ampliar as virtudes do cidadão para melhorar o seu passadio e o da comunidade em que vive, eis o desafio ecológico posto sobre a mesa do café da manhã familiar neste início de janeiro. Terá ele condições ou coragem de alterar uma rotina de tanto tempo, tão entranhada em sua maneira de ir tocando as coisas? Cumprirá o combinado a ferro e fogo ou encontrará mil e uma chicanas para contornar o prometido? Suportará as cobranças de tal panóptico, subitamente focado no encalço dos seus passos?
Para começar, beber e comer menos, trocar os modos do Baco pantagruélico pelos do faquir espartano. Banir da vontade todas as comidinhas emocionantes que tanto se insinuam ao seu apetite e substituí-las por repastos mais saudáveis e orgânicos. Numa palavra: sai de campo, esbaforida, a panelada do Fabiano e entra, cheio de gás, o rodízio de chuchu. Na agenda líquida, limitar os destilados e fermentados às quantidades mínimas em proveito da boa e refrescante água, nas versões mineral e de coco. Terminantemente proibida a já longeva prática do Bardhal (ingestão farta de cerveja, com cachaça para rebater). Claro, o esforço de reeducação alimentar deverá ser complementado por suarentas caminhadas em calção, camiseta regata e tênis pelos calçadões.
No quesito cultural, a ordem é expandir limites e abolir preconceitos. Deixar de lado as velhas preferências e experimentar universos nunca dantes penetrados. Até breve Nelson, Gullar, Melville, filmes de gangster e faroeste, be-bop, bolero, bossa nova, blues inglês, Caetano, Caravaggio, Bacon, Brecht, Corbu, Reidy e Brando. Boas vindas Galera, Carpinejar, Agualusa, filmes peruanos e iranianos, nu-jazz, arrocha, MPB gringa, zouk-carimbó, Criolo, pichadores, arte pública e coletiva, Müller, Hadid, Rosenbaum e Franco. Não sabe se agüentará esse inusitado cardápio. Aprendeu com Borges que selecionar o acervo de uma biblioteca é uma excelente forma de exercer a crítica literária. Nas estantes, seus antigos ídolos, mãos já acenando adeuses.
A ambiciosa ementa, para ele agora quase um calvário, também se estende à descoberta de novos e surpreendentes lugares. Afinal, há muito mais destinos que o sambado roteiro casa-trabalho-escritório-boteco pode oferecer. Fazer compras ao cair da tarde em feéricos supermercados. Bater perna no shopping elegante, casando a comédia romântica insossa do cinema com o lanche frugal na tapiocaria. Curtir pic-nics nos parques de Fortaleza aos sábados e domingos à tarde. Exercitar-se até a exaustão nos equipamentos da academia de ginástica. Virtualmente, aventurar-se nas muitas vias do cyber-world. Por fim, ficar mais em casa, no sacrossanto recesso do lar, lugar calmo e sossegado. Estaria ele preparado para dar um tempo nos benjamins da Travessa Crato?
Com essa alentada lista de itens politicamente corretos pregada na testa, ele se levanta para tomar banho e ir trabalhar. Sob a cálida torrente da piscina vertical (obrigado, Aírton Monte), reflete sobre a onipresente expressão “qualidade de vida”. Será que a conquista deste tão almejado patamar do existir implicaria inexoravelmente na abdicação de gostos e vícios longamente adquiridos e desfrutados? Programa de índio seria agora obrigação implacável? Haveria vida no planeta Tédio? Arruma-se com vagar, pensando no duro repto posto à sua frente. Evitá-lo-á mais uma vez, driblando-o às gargalhadas? No ônibus (prometeu deixar o carro na garagem e andar mais), o amigo, recém-convertido ao credo, lhe desejou sorrindo ano novo e vida nova.

Fonte: jornal O POVO, 13 de janeiro de 2014.

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