Por Romeu Duarte
Todo final e começo de ano é a mesma coisa.
Se o desejo não parte de dentro do sujeito, de alguma busca ou carência que se
anseia solucionar, são imposições alheias ao nosso talante que nos determinam
outra forma de viver. Diminuir os defeitos e ampliar as virtudes do cidadão
para melhorar o seu passadio e o da comunidade em que vive, eis o desafio
ecológico posto sobre a mesa do café da manhã familiar neste início de janeiro.
Terá ele condições ou coragem de alterar uma rotina de tanto tempo, tão
entranhada em sua maneira de ir tocando as coisas? Cumprirá o combinado a ferro
e fogo ou encontrará mil e uma chicanas para contornar o prometido? Suportará
as cobranças de tal panóptico, subitamente focado no encalço dos seus passos?
Para começar, beber e comer menos, trocar
os modos do Baco pantagruélico pelos do faquir espartano. Banir da vontade
todas as comidinhas emocionantes que tanto se insinuam ao seu apetite e
substituí-las por repastos mais saudáveis e orgânicos. Numa palavra: sai de
campo, esbaforida, a panelada do Fabiano e entra, cheio de gás, o rodízio de
chuchu. Na agenda líquida, limitar os destilados e fermentados às quantidades
mínimas em proveito da boa e refrescante água, nas versões mineral e de coco.
Terminantemente proibida a já longeva prática do Bardhal (ingestão farta de
cerveja, com cachaça para rebater). Claro, o esforço de reeducação alimentar
deverá ser complementado por suarentas caminhadas em calção, camiseta regata e
tênis pelos calçadões.
No quesito cultural, a ordem é expandir limites
e abolir preconceitos. Deixar de lado as velhas preferências e experimentar
universos nunca dantes penetrados. Até breve Nelson, Gullar, Melville, filmes
de gangster e faroeste, be-bop, bolero, bossa nova, blues inglês, Caetano, Caravaggio,
Bacon, Brecht, Corbu, Reidy e Brando. Boas vindas Galera, Carpinejar, Agualusa,
filmes peruanos e iranianos, nu-jazz, arrocha, MPB gringa, zouk-carimbó, Criolo,
pichadores, arte pública e coletiva, Müller, Hadid, Rosenbaum e Franco. Não
sabe se agüentará esse inusitado cardápio. Aprendeu com Borges que selecionar o
acervo de uma biblioteca é uma excelente forma de exercer a crítica literária.
Nas estantes, seus antigos ídolos, mãos já acenando adeuses.
A ambiciosa ementa, para ele agora quase um
calvário, também se estende à descoberta de novos e surpreendentes lugares.
Afinal, há muito mais destinos que o sambado roteiro
casa-trabalho-escritório-boteco pode oferecer. Fazer compras ao cair da tarde
em feéricos supermercados. Bater perna no shopping elegante, casando a comédia
romântica insossa do cinema com o lanche frugal na tapiocaria. Curtir pic-nics
nos parques de Fortaleza aos sábados e domingos à tarde. Exercitar-se até a
exaustão nos equipamentos da academia de ginástica. Virtualmente, aventurar-se
nas muitas vias do cyber-world. Por fim, ficar mais em casa, no sacrossanto
recesso do lar, lugar calmo e sossegado. Estaria ele preparado para dar um
tempo nos benjamins da Travessa Crato?
Com essa alentada lista de itens
politicamente corretos pregada na testa, ele se levanta para tomar banho e ir
trabalhar. Sob a cálida torrente da piscina vertical (obrigado, Aírton Monte),
reflete sobre a onipresente expressão “qualidade de vida”. Será que a conquista
deste tão almejado patamar do existir implicaria inexoravelmente na abdicação
de gostos e vícios longamente adquiridos e desfrutados? Programa de índio seria
agora obrigação implacável? Haveria vida no planeta Tédio? Arruma-se com vagar,
pensando no duro repto posto à sua frente. Evitá-lo-á mais uma vez, driblando-o
às gargalhadas? No ônibus (prometeu deixar o carro na garagem e andar mais), o
amigo, recém-convertido ao credo, lhe desejou sorrindo ano novo e vida nova.
Fonte: jornal O POVO, 13 de janeiro de 2014.
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