Mercearia e Bar Raimundo dos Queijos |
Por Romeu Duarte
À mesa amiga,
galhofeira e zoadenta do Raimundo do Queijo, pediram-me uma definição
contemporânea de fuleiragem e molecagem, vocábulos tão queridos e praticados
nesta Taba de Alencar. Aceitei o desafio da árdua tarefa, mesmo sabendo que
gente da estirpe intelectual de um Quintino Cunha e de um Leonardo Mota já tinha
navegado com seus barcos de grande calado por essas revoltas águas. “Quem sabe
não atualizo as significações desses verbetes?”, pensei com meus botões, que me
responderam em uníssono de suas casas: “Pretensiosinho, hein? Fuleiragem de
moleque ou molecagem de fuleiro?”. Sorvendo a penúltima, pedi uma semana para
dar conta do recado, alegando sua complexidade. “É muita fuleiragem”, disse o
cego sanfoneiro.
Em casa, rodeado
de dicionários físicos e virtuais, iniciei minha exploração nas selvas dos
significados e étimos das duas palavras. Fuleiragem vem de fuleiro, “coisa ou
pessoa de baixa qualidade, irresponsável, gaiata”, expressão derivada do calão
lusitano “foleiro”, que quer dizer “mau gosto”. Fuleiragem seria então o feito
de uma pessoa desqualificada ou então descomprometida, porém amigável. Por sua
vez, molecagem é coisa de moleque, que tanto pode ser “menino que vive na rua”
quanto “indivíduo sem compostura, indigno de crédito”. Assim, molecagem é
arrumação de fedelho danado e também patifaria. Ou seja, dois termos nômades,
que vão e vêm de um pólo negativo a outro positivo, curtindo horrores com a
cara alheia, alencarinos até a medula.
Mas, para além
das letras, há a vida, que a tudo transforma e empresta novos sentidos.
Oscilando entre o pejorativo e o esperto, a fuleiragem pode se constituir numa
tremenda sacanagem, em algo sem valor aparente ou numa brincadeira desobrigada
de razão. Um pacote de chegadinha, a topic que vai lotada para Messejana, a
quentinha de frango com baião comida no sol quente, uma piada da Rossicléa, os
CDs piratas do Buraco da Jia são tão fuleiragens quanto a passarela metálica
furreca defronte ao Centro de Eventos, a butique com nome estrangeiro
impronunciável no Meireles e o vinho de marca misturado com o rango xing-ling.
Fuleiragem é substantivo que é ruim e bom ao mesmo tempo, depende do prisma,
tudo vale a pena se a alma não se aliena.
Já a molecagem,
penso, está mais para o verbo, o ato de realizar a baixaria, odiosa para quem a
sofre, agradável para quem dela sorri, fundamental para quem sobre ela reflete.
Que o diga o Astro-rei, que em janeiro de 1942, por ter frustrado quem esperava
uma copiosa chuva na Praça do Ferreira, foi vaiado com estrépito por um grupo
de circunstantes, todos certamente moleques, alguns até de idade avançada. Acolher
com sarcasmo as tragédias do cotidiano, nossa marca registrada, é costume que
refinamos ao longo do tempo, para o bem e para o mal. Damos fé disso tanto na
dança do jumento encenada pelo Falcão quanto na gaitada movida a uísque do
bacana atolado até o pescoço no podre escândalo dos banheiros. Afinal, o Cine
Holliúdi é aqui.
Haveria
semelhanças, pontos de contato entre essas duas palavras? Que critérios usaremos
para abrigar nos espaços que constroem, com suas sonoridades, coisas e ações
recentes tais como a adutora quengada de Itapipoca, os dólares na cueca do
assessor parlamentar, os viadutos e a “colcha de retalhos” do Parque do Cocó,
os políticos inimigos figadais no passado e hoje de mãos dadas, trocando
beijinhos? Atarantado, encontro-me mais confuso e menos sabido do que no
começo. Em algum ponto, perdi-me na determinação do in e do out dessa história
toda, ofício, aliás, safado e sem futuro. É, parece que não conseguirei cumprir
o meu intento. Candidato a bater fofo com a turma boa da Travessa Crato, mais
um moleque fuleiro na praça.
Fonte: jornal O POVO, edição de 27 de janeiro de 2014.
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