Por Romeu Duarte
Depois de trinta e cinco
anos de batente diário, repousava ali na sua frente, sobre a mesa de trabalho,
a portaria que lhe concedia a aposentadoria do banco. O portador do documento,
o auxiliar de serviços gerais, escarafunchava o nariz, absorto, ansiando pela
rápida assinatura do seu agora ex-chefe no livro de protocolos para pegar o
beco mais cedo. O jamegão do mais recente aposentado da Terra saiu firme,
entretanto algo trêmulo pela emoção contida no ato. Sete lustros de lida finalizados
com uma garatuja feita com uma Bic cor azul. As mesmas, aliás, naquele já
distante 1979, que lhe abriram as portas para este mundo. De repente, a sala
prorrompeu em aplausos, seus muitos colegas vieram lhe abraçar, o bolo
escondido apareceu, entre risos e guaranás.
O que faria agora de sua
vida, tão alinhada e dependente da rotina daquele estabelecimento? Entrara ali
pouco mais que um garoto, após a aprovação em um rigoroso concurso. Ele, menino
danado do interior, inteligente e bom de mandado, soube aproveitar e como a
escassa oportunidade. Diligente e solidário, qualidades difíceis de encontrar
em um só vivente, foi galgando um a um os patamares do ofício naquela autarquia
federal até se instalar em tranquilo cargo, que ele apelidou de “posto de
observação do sistema financeiro nacional”. Desta privilegiada atalaia, pôde
acompanhar e refletir sobre a trajetória das finanças brasileiras, xadrez
jogado em mil dimensões, que ele agora compreendia tão bem, justamente na hora
do apagar das luzes.
“Parabéns, amigo”, disse-lhe
um colega, a boca cheia de farelo do bolo, “serás agora o gerente da tua
existência, com tempo de sobra para programá-la de acordo com a tua vontade”.
Incendiário, o glutão sugeriu: “Sacode fora a gravata, toca fogo no paletó. Aproveita
este teu momento com prazer e sabedoria. Inaugura a tua perene folga com uma
generosa dose de um bom escocês doze anos”. Desarmado, o jeito era comemorar
com goladas do inocente refrigerante. Súbita paranoia: “Estarão eles alegres
com o meu feito ou por se verem livres de minha pessoa?”. A dúvida atroz
rapidamente dissipou-se com o discurso escrito num rolo de papel higiênico e
lido com graça e em tom de agradecimento pelo impagável diretor, seu antigo e
fiel estagiário.
Na rua, logo depois dos
numerosos e demorados abraços de adeus, agora envolto pelo ar condicionado do
táxi novo em folha, nosso caro ex-funcionário, agora já entronizado no
confortável universo dos reformados, olhava o prédio em que passara labutando
essas mais de três décadas e repetia o Shakespeare que aprendera no colégio:
“Toda despedida é dor...tão doce, todavia, que eu te diria boa noite até que
amanhecesse o dia”. A geografia da cidade outra lhe seria então, oferecendo-lhe
leituras diferenciadas de ruas e espaços que antes só faziam sentido por lhe
conduzirem ao local da faina cotidiana. “Há toda uma Fortaleza por descobrir;
esta será minha primeira aventura, ave livre da gaiola dos horários”, ruminava,
neo-desbravador urbano.
Entretanto, já havia
escolhido sua Pasárgada, seu país de delícias: o lar. “Lá serei amigo de mim
mesmo, terei a vida que eu quiser, do jeito que escolherei”, certificava-se,
indicando ao taxista o caminho do agradável prédio de apartamentos no Bairro de
Fátima. Em lá chegando, contou a boa nova à mulher, a carta de alforria
dançando entre as mãos nervosas. Ela, desconfiada e matreira como toda filha de
Eva, decretou: “O quê?! Ficar em casa sem fazer nada?! De jeito nenhum. Você é
novo ainda, vá tratando de arrumar alguma coisa para cuidar, quem fica parado é
poste, avie!”. Foi para o quarto despir-se. “Como pode ser tão insensível?”.
Surpresa: clandestino, no bolso do terno, o bilhetinho do diretor gozado: “Debaixo da porta do aposentado cresce capim".
Fonte: jornal O POVO, 20 de janeiro de 2014.
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