Urbanizaçao Vila do Mar - bairro Pirambu, Fortaleza/CE |
Por Romeu Duarte
Se a cidade é uma
coisa complexa e complicada, o saber/fazer que lhe estuda e aborda fisicamente,
o urbanismo, não o é menos. No mundo ocidental, construídas ao longo dos
séculos e ao sabor dos eventos por mãos leigas e eruditas, as cidades só se
tornaram um objeto de conhecimento específico no alvorecer do século XX, quando
Ildefonso Cerdá, o criador do ensanche
de Barcelona, deu um nome e um estatuto a esse ofício. Até então, elas se
reproduziam nos mundos Velho e Novo em seus caminhos, marcos, articulações,
barreiras, limites e bairros, modelo tradicional do fazer urbano descendente da
trama hipodâmica e do cruzamento do cardus
com o decumanus. A herança do desenho
ancestral mora no corpo e na alma de toda e qualquer urbe, grande, média ou
pequena.
Mas, a essa
altura, a cidade já se transformava em monstro na fumaça da Revolução
Industrial. Novos meios de transporte, vias rasgando o antigo tecido citadino, o
êxodo avassalador de levas e levas de gente do campo, as fábricas e os bairros
operários, as favelas e as áreas chiques. Segregação, espoliação, exclusão,
apartação, maldição. O urbanismo modernista vai recortar as cidades em zonas de
trabalho, habitação e recreação, unidas pelo autorama rodoviarista da
circulação. O planejamento urbano e seu corolário, o plano diretor, surgem como
panacéias abstratas para todos os males das aglomerações humanas, deixando em
último plano, calado e esquecido, seu pretenso beneficiário, o habitante. Hoje,
em tempos líquidos como querem alguns, a cidade se faz do medo dos que temem
ficar para trás.
Diria Fortaleza:
“E eu com isso, caixão de lixo?”. Um forte arruinado em meio a um imenso areal,
poucos sobrados, tantas choupanas, uma mera hipótese geográfica, foi esta a
imagem de nossa capital por muitos e muitos anos. O algodão escoando pelo seu
porto no século XIX trouxe-lhe a Belle Époque, deu-lhe modos e maneiras
afrancesadas, construiu-lhe a Praça do Ferreira e o Theatro José de Alencar.
Toda essa belezura estanca nos anos de 1930 com a industrialização e a
periferização da cidade, Jacarecanga e Arraial Moura Brasil, Aldeota e Pirambu.
A Loura irreverente e anárquica, avessa a planos e idéias amplas, cresce,
incha, se muda em metrópole descapitalizada e dividida, cidade leste rica,
cidade oeste pobre. Nos dias que correm, densa e desigual, feia e violenta, ela
nos convida a decifrar seus intricados enigmas.
Numa palavra: a
cidade é a maior invenção do homem. Tem cheiros, sabores, sons, texturas,
jeitos, aspectos e detalhes, num todo que é maior que a soma de suas partes e
permeado pela memória. Dela aproveitamos, como diz Ítalo Calvino pela boca de
Marco Polo, a resposta que dá às nossas perguntas. Aliás, quem sabe se as seis
propostas para o novo milênio que o escritor cubano-italiano, no apagar de suas
luzes, apresentou como norte à literatura não sirvam também, da mesma forma, ao
urbanismo? Decerto, nossas novas formas de viver estão a exigir leveza,
rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, o que aproxima
a arte de reunir palavras em busca de um sentido daquela sua outra irmã que
procura o mesmo fim, articulando espaços, fluxos, economias e pessoas.
Eram esses os
temas que animavam a conversa daqueles arquitetos, sentados em círculo no
escritório simples, instalado no alto edifício varado pela luz vespertina. À
frente de todos, representada num mapa multicor com suas virtudes, defeitos,
potenciais, ameaças e perspectivas, a matéria de sua atenção, como
profissionais e cidadãos-moradores, jazia plácida e desafiadoramente sobre a mesa
de madeira e vidro. A ambiciosa tarefa de compreendê-la e nela intervir já
havia consumido rios de tinta e florestas de papel. Quanto mais cansados, mais
motivados, pois a cidade é uma mulher que quer sempre o melhor dos seus
amantes. As primeiras estrelas decretaram o fim daquela reunião. Despediram-se
calorosamente com a promessa de um breve novo encontro. Lá fora, a vida era um
longo texto não verbal.
Foto: Divulgação/Ministério do Planejamento
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