segunda-feira, 28 de julho de 2014

POBRE LÍNGUA RICA

 Por Romeu Duarte


A morte de um escritor desperta em seus leitores um lamento pleno de saudade e reconhecimento. Sua voz calada, sua escrita bruscamente interrompida representam, além da perda e do luto para aqueles que o pranteiam, uma indagação à língua e à literatura: como estas seguirão adiante sem a sua contribuição? Neste surpreendentemente aziago julho, já em seus estertores, perdemos não só um, mas três autores de muito boa cepa. Pela ordem cronológica de partida, Ivan Junqueira, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Todos, cada um a seu modo, intérpretes do Brasil, do seu povo, dos seus falares, mestres em prosa e rima, o erudito e o popular como faces da mesma mestiça moeda. Todos acadêmicos, no que essa palavra ainda tem de bom. Imortais, mesmo assim o chão os engoliu.
Poeta e tradutor, Ivan Junqueira quase foi médico e filósofo. Para muitos, um poeta de poetas, culto e refinado, infelizmente pouco lido, entretanto multipremiado. Tradutor de Baudelaire, Leopardi e Eliot, fui à obra poética deste último gigante introduzido por um grande trabalho seu, “Poesia”, o prazer de saborear os Quatro Quartetos em meio à Terra Desolada. Sucedendo a João Cabral de Melo Neto, ocupava desde 2000 a cadeira 37 da ABL, que tem como patrono o árcade Tomás Antônio Gonzaga e Silva Ramos como seu primeiro ocupante. Canta, bardo, tua canção bela e doída: “...Foram damas tais ossos, foram reis e príncipes e bispos e donzelas, mas de todos a morte apenas fez a tábua rasa do asco e das mazelas. E aí, na areia anônima, eles moram. Ninguém os escuta. Os ossos choram”.
João Ubaldo nunca deixou de ser o morador despreocupado da ilha de Itaparica, nu da cintura para cima, calção frouxo, a gaiola com o curió numa mão e o copo de cana na outra. Sucedendo a Carlos Castello Branco, respondia desde 1993 pela cadeira 34 da ABL, cujo defensor é Sousa Caldas, tendo sido Pereira da Silva seu primeiro usuário. Polígrafo, fez também seus personagens e tramas apimentadas incursionarem com sucesso pela televisão, cinema e teatro. Ganhador do Camões em 2008, o mais importante prêmio literário do idioma português, dele disse seu colega de academia Antônio Olinto: “Mas como falar deste país sem o lanho do humor? Em tudo insere João Ubaldo a visão do humorista, que vê o que não aparece, identifica a nudez das gentes, entende os pensamentos ocultos”.
Ariano Suassuna foi o inventor do Nordeste armorial, ponta-de-lança da cultura do agreste e da zona da mata, protetor perpétuo do ôxente nas refregas deste contra o ok. Último dono da cadeira 32 da ABL, protegida por Manuel de Araújo Porto Alegre e inaugurada por Carlos de Laet, substituiu Genolino Amado em 1989. Famoso pelas freqüentadas e polêmicas aulas-espetáculo, nas quais defendia ardorosamente seus pontos de vista (para alguns, reacionários) com um sonoro e provocante sotaque pernambucano da gema, influenciou um sem número de artistas, fazendo tanto discípulos quanto contrários. João Grilo medievalmente doente pelo Sport, crítico do país dividido entre privilegiados e despossuídos, dizia: “Arte para mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte para mim é missão, vocação e festa”.
Esse triste cortejo fúnebre de defuntos craques da pena lança luzes sobre uma misteriosa e mais que centenária instituição, a Academia Brasileira de Letras. Fundada em 1897 por Machado de Assis e por gente do naipe de um Joaquim Nabuco e de um Rui Barbosa, o velho sodalício hoje atravessa um mau momento, marcado por sua irrelevância na vida cultural brasileira, pelo seu anacronismo e, lamentável, pela presença em seus assentos de vários membros destituídos da mínima qualificação literária. Antes que Veronika decida morrer, picada por marimbondos de fogo, e que o feitiço se volte contra o feiticeiro, quem viver verá: as três vagas abertas irão atiçar a cobiça de mil bichos-literatos de unha e orelha, de poucas letras e muita empáfia. Teremos mais uma infausta surpresa na Casa do Bruxo do Cosme Velho?

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